7.5.12

Ainda os cafés do Porto


Há muito que não publico textos sobre curiosidades da cidade.

Na limpeza dos meus arquivos acabo de encontrar algo que já tinha guardado e quase esquecido. Como o link para a página onde estava publicado já não funciona, resolvo publicá-lo aqui para que não se perca.

Como a sua publicação é para a divulgação da cidade e das pessoas que nela vivem ou viveram, espero que o autor não veja inconveniente de o colocar aqui.




Em Louvor dos Cafés do Porto

Por Germano Silva *

Há uma história que está por fazer - a dos cafés do Porto. Não a história cronológica desde quando apareceram até ao seu desaparecimento, mas a história do importante papel que esses espaços públicos, se assim se pode dizer, desempenharam como lugares do intercâmbio de ideias e centros de difusão de culturas, tanto modernas como antigas. Nos idos de sessenta, essa verdadeira instituição portuense que foi o "café" desempenhou um papel de tal modo importante na história das artes, da literatura, do teatro e também da política, que não pode passar despercebida à análise mais ou menos crítica do cronista atento ao fenómeno cultural de uma cidade com a dimensão da do Porto. Houve cafés nesta nossa cidade que rivalizaram com as academias e, pode mesmo dizer-se, até com a própria Universidade. Ao redor das suas mesas, com tampos de mármore ou de vidro, travaram-se autênticas batalhas de estética, deram-se a conhecer, em primeira mão, tratados, romances, poemas. Congeminaram-se formas de resistência à ditadura e deram-se a conhecer alguns planos de luta contra o poder instituído. A determinados movimentos ou correntes correspondiam determinados "cafés". No desaparecido Rialto (ficava na Praça de D. João I) , por exemplo, reunia-se o grupos dos poetas que editavam as "Notícias do Bloqueio". Eram eles o Egito Gonçalves, o Daniel Filipe, o Papiniano Carlos, o Luís Veiga Leitão, o António Rebordão Navarro, às vezes o José Augusto Seabra e, sempre que os trabalhos jornalísticos o permitiam, o autor destas linhas, então um jovem candidato a jornalista. As "Notícias do Bloqueio", redigidas "à sombra" dos murais de Abel Salazar pintados nas paredes do café, eram, sobretudo, cadernos de poesia mas eram também e, fundamentalmente, trincheiras de combate político e tribuna de difusão de novas ideias. "Noticias do Bloqueio" é o título de um poema do Egito. Recordo-me que foi o Daniel Filipe quem sugeriu que fosse o título desse poema a servir de cabeçalho aos cadernos. A colecção completa destes cadernos é hoje raríssima e, por isso, difícil de encontrar. A sua reedição seria como que o "pontapé de saída" para a tal história dos nossos "cafés". Outro "café" cultural era a Primus - um misto de café e confeitaria à volta de cujas mesas eram certos, a determinadas horas do dia, o arquitecto Américo Losa e a mulher, a escritora Ilse Losa; o prestigiado advogado e respeitado combatente pelas Liberdades, Artur Santos Silva; António Ramos de Almeida que orientava o Suplemento Cultural do "Jornal de Notícias", onde acolhia fraternalmente os jovens que então ensaiavam os primeiros voos artísticos, literários ou teatrais. Recordo que o Círculo de Cultura Teatral - Teatro Experimental do Porto (TEP) tinha acabado de ser fundado e funcionava, com pleno êxito, no seu teatrinho da antiga Travessa de Passos Manuel, hoje denominada Rua do Ateneu Comercial do Porto. O grande mestre do Teatro que foi o António Pedro, sempre que os seus afazeres de director do TEP lhe davam alguma folga, bem como os actores que constituíam a Companhia do Teatro, eram também certos na Primus. "Primus inter pares", assim se lhe referiu Daniel Filipe numa das belissímas crónicas que diariamente publicava no "Diário Ilustrado". Escreveu: "Há no Porto um café onde se pensa. Há no Porto um café onde se escreve. Há no Porto um café onde se discute..." E o "Majestic", hoje uma instituição da cidade? O que esse "café" representou e representa no panorama cultural do Porto! Houve um famoso grupo de artistas que o elegeu como praça forte para as suas guerras contra o "statu quo", que o mesmo é dizer contra o imobilismo e a inércia reinantes. Foram eles o José Rodrigues, o Armando Alves, o Ângelo de Sousa e o Jorge Pinheiro que passaram à história artística do Porto com a designação de "Os Quatro Vintes". Ainda muito recentemente, num agradável convívio com três dos "Quatro Vintes" (o Zé Rodrigues, o Armando e o Ângelo) se evocou, com alguma emoção, o tratamento afectuoso de que estes artistas eram alvo por parte dos donos do "Majestic". Não há dúvida que para muitos deles, o "café", além de ser a sua Academia, era também uma espécie de lar onde podiam aquecer-se e alimentar-se, graças, muitas vezes, à generosidade de nobres gerentes hoje infelizmente esquecidos... Outro café, inexplicável e incompreensivelmente desaparecido, mas não esquecido, e que merece ser referido aqui, pois exerceu também uma grande influência no pensamento cultural e político do século XX, foi "A Brasileira". Era frequentado, indiferentemente, por homens da esquerda e da direita. Com esta singularidade: os de esquerda sentavam-se à direita e os de direita ocupavam as mesas do lado esquerdo.



As tertúlias do Café Ceuta



O "Ceuta", um dos raros grandes "cafés" do Porto ainda em actividade, acolheu durante anos uma animada tertúlia literária criada pelo Fernando Fernandes, o grande animador da Livraria Leitura que sucedeu à Divulgação. Recorde-se, a propósito, que a Divulgação nasceu a partir do Movimento Cultural Convívio, que surgiu com a página cultural do jornal "A Planície" que se publicava em Moura, no Alentejo. A primeira loja da Divulgação funcionou num sétimo andar do prédio número 22 da Praça de D. Filipa de Lencastre. Só mais tarde se transferiria para o cimo da Rua de Ceuta, já com o Fernando Fernandes (vindo da Livraria Aviz) como seu grande dinamizador. Os homens da tertúlia do "Ceuta" sentavam-se invariavelmente ao fundo da sala, perto do balcão da copa. Começavam a chegar à hora do lanche e iam ficando pela noite fora, às vezes até à hora do encerramento do café e, não raras vezes, vigiados de perto pelos esbirros da polícia política, a celebrada PIDE. Além do Fernando Fernandes e dos seus companheiros de aventura na Divulgação, o Carlos Porto e o Vítor Alegria, eram assíduos àquelas reuniões, Luís Veiga Leitão, António Emílio Teixeira Lopes, Orlando Neves que com a Maria Virgínia de Aguiar, então sua mulher, fundou e dirigiu a revista "A Cidade - do Porto e pelo Norte"; o jornalista Pedro Alvim; os actores Dalila Rocha e João Guedes, além do mestre António Pedro; e ainda Manuel Baganha, Luís Ferreira Alves, Jorge Baía da Rocha, Carlos Ispaim e muitos, muitos outros. Dos habituais frequentadores desta tertúlia do "Ceuta" alguns eram exímios jogadores de bilhar e muitas vezes deliciavam os numerosos assistentes com renhidas partidas de "snooker" na cave do "Ceuta". A esta época dourada dos "cafés" do Porto deve-se juntar a intensa actividade cultural e artística que se operava na cidade através do Cine Clube do Porto, da Associação dos Jornalistas e homens de Letras do Porto, da Galeria Alvarez que o Jaime Isidoro criara na Rua da Alegria e que era a primeira do seu género no Porto; da Cooperativa Artística Árvore que continua a produzir frutos em abundância e de excelente qualidade; e da própria Escola Superior de Belas Artes dirigida, então, por esse homem superior que foi o mestre Carlos Ramos. Trago este assunto às páginas deste número especial da "Porto de Encontro" para prestar homenagem a uma grande instituição que ainda hoje no Porto procura manter-se viva - o "café". É o caso do legendário "Âncora D'Ouro", mais conhecido por "O Piolho", e o "Orfeuzinho", lá para as bandas da Rotunda da Boavista. São dois locais onde certas pessoas, a determinadas horas, ainda se reúnem para trocar ideias, falar do próximo livro. Que dizer de "O Piolho": lembrar as manhãs ociosas e as longas noites em que a vida não ia além, ainda, de uma ilusão da Primavera da vida... Façamos votos para que no futuro os vindouros possam também dizer que muitos dos cafés de hoje exerceram a sua influência no pensamento do século XXI.


* Escritor, jornalista e editor da revista "Visão"


Texto originalmente publicado na revista "Porto de Encontro", Julho de 2001.»



1 comentário:

Vasco disse...

Obrigado por seu trabalho: nós aprendemos cheio de coisas nas ruas de Porto, nós podemos visitar a cidade em uma poltrona!
E até mesmo quando nós moramos na França.
Cordialmente
o Alex