Mostrar mensagens com a etiqueta Leituras. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Leituras. Mostrar todas as mensagens

1.4.16

Jazigo da Família Sérgio Trémont

2016_114


Sérgio Trémont foi um dos alfarrabistas da rua de Cedofeita. O seu comércio era sobretudo dedicado a publicações sobre o cinema - revistas e livros. Creio que era a única casa especializada sobre o assunto.

A loja encerrou nos inícios do século XXI pois o prédio sofreu uma reabilitação total. 

O que terá acontecido a todas aquelas toneladas de papel impresso sobre a sétima arte? 

31.1.16

2016 - 31 de Janeiro



O 31 DE JANEIRO E A HISTÓRIA

Mais um velho texto de

Pedro Baptista, escritor e investigador

Para relembrar esta data emblemática da cidade do Porto.

"Reinando até hoje grande falta de trabalho científico quanto ao ideário filosófico e político dos republicanos portuenses da década de 1880, não falta quem procure minimizar o carácter popular e revolucionário do Movimento, ora relegando-o para um acto de indisciplina, ora para uma mera revolta militar com objectivos profissionais, sublinhando, entre os mais nefandos pecadilhos, o facto de ser constituído por baixas patentes. 

Ora os factos demonstram, em primeiro lugar, que o movimento surgiu na cidade mais industrial do país, com um terço da população operária, num momento em que a crise económica e social era profunda e atravessava diversos sectores sociais. 
Em segundo lugar, que a imprensa portuense republicana há muito flagelava a monarquia decadente, num trabalho diário argumentativo onde pontificava Sampaio Bruno e onde se propagandeava, com cada vez mais sucesso, o ideário democrático e federalista, como alternativa a uma realeza que se afundava, política e moralmente, não apenas fazendo o país custear os desvarios dos Bragança, como sendo o rosto da subserviência ao Ultimatum da Rainha Vitória. Em terceiro lugar, que o movimento eclodiu sob a liderança civil dos republicanos portuenses, tendo ocorrido três semanas antes, uma cisão no Partido em Lisboa, passando a pontificar a figura de Homem Cristo no lugar da de Elias Garcia, este a par do processo, aquele também manifestando o acordo, excepto em pormenores; o facto da Maçonaria castigar os “irmãos “ do Porto e logo a seguir ser obrigada, pelo próprio protesto maçónico lisboeta, a revogar tal decisão, é significativo. 
Em quarto lugar, que o movimento teve um carácter militar, como não podia deixar de ser entre nós, constituído sobretudo por sargentos e praças, com poucos oficiais subalternos e ainda menos superiores, que pressionaram no sentido da eclosão do movimento naquela data, uma vez que o governo monárquico, ao mesmo tempo que aliciava a Guarda Municipal com melhorias do pré, decidira-se pela transferência de militares revolucionários, levando-os a pressionar a direcção civil no sentido de apressar o calendário; que se vivia um ambiente de revolta entre a tropa contra as condições profissionais e as medidas repressivas é um facto, mas não há memória de soldados satisfeitos participarem num processo revoltoso ou revolucionário. Utilizando uma expressão de um jornalista republicano e alterando-lhe o sentido, alguns gostam de repetir que estivemos perante uma “sargentada”, como se o facto do oficialato em geral se encolher, e serem sargentos e praças a constituírem a parte militar do movimento, não fosse uma honra e uma demonstração do carácter popular do próprio movimento militar. 
Em quinto lugar, que a revolução do 31 de Janeiro teve um carácter eminentemente popular não apenas pelo que já foi dito, como pela participação entusiasta das massas populares durante a madrugada, acompanhando a tropa revolucionária, arrombando, a golpes de machado, os portões de Infantaria 18, descendo para a Praça de D.Pedro, subindo a Rua Nova de S. António e partilhando com os líderes da insurreição a ilusão trágica de que a Guarda Municipal, instalada na escadaria existente a Poente da Igreja de St. Ildefonso, poderia aderir à causa revolucionária, paga num rio de sangue popular e militar numa rua juncada de cadáveres.

Pode dar-se muitos sentidos ao termo “revolta”. Mas, socialmente, revolta é um protesto, uma recusa, uma contestação a problema específico, geralmente dentro duma instituição, não tendo outro objectivo senão resolver aquele problema. Embora muita revolta possa dar em revolução quando surge liderança política, são conceitos totalmente diferentes, porque a revolução quer alterar um sistema instituído, pretende tomar o poder global para mudar o sistema de vida, incida mais nos prismas políticos, sociais, económicos ou mesmo culturais. 

Assim sendo é uma imprecisão falar de revolta do 31 de Janeiro, mas deve falar-se outrossim da Revolução do 31 de Janeiro. A sua direcção sabia muito bem o que queria, tanto assim que a República foi proclamada no Porto, pela primeira vez em Portugal, nessa manhã, para todos os efeitos históricos, gloriosa, tal como foi anunciada a lista governativa, com alguns nomes que, 19 anos mais tarde, vieram a preencher a Junta provisória saída da Revolução do 5 Outubro de 1910.

Que venceu. Como a de Janeiro de 1891 não venceu. Em 1910, o Almirante Cândido dos Reis suicidou-se quando se apercebeu que a revolução tinha falhado. 
Enganou-se. Em 1891, outros morreram na crença romântica de que os camaradas iriam aderir à fanfarra revolucionária como em 1820. 

Enganaram-se. Mas isso em nada muda o carácter dos movimentos nem a glória das revoluções que substituíram, em Portugal, na relação dos cidadãos com o poder, o princípio da hereditariedade pelo da elegibilidade. Saibamos hoje dar a este princípio republicano o conteúdo social que merece."


Este blogue continua aberto a textos sobre a cidade de outras pessoas. Normalmente peço textos a amigos para os publicar aqui mas não excluo outros autores desde o momento em que o texto tenha algo a ver com a cidade.

T. D.


19.5.14

LUTADOR ANTIFASCISTA

2014_199


Com a devida autorização, transcrevo um artigo da autoria de António Castilho Dias.


«Ano de 1969. 
A crise académica desencadeou-se em Coimbra aquando da visita do então Presidente da República, Américo Thomaz. 
Na sessão de inauguração de um novo edifício, salvo erro ligado às Matemáticas (mas haverá muita gente que conhece melhor esta peripécia do que eu e pode corrigir-me), o presidente da Associação Académica e actual deputado Alberto Martins pretendeu usar da palavra como representante dos estudantes. Tal foi-lhe negado. 
Quando os participantes na cerimónia saíram para o exterior, um muito numeroso grupo de estudantes insultou o Thomaz (chamando-lhe, em bem sonoro e afinado coro, de palhaço) e outras altas individualidades como o então ministro da Educação, o bem conhecido Hermano José Saraiva. 
Daí para a frente, foi um processo tumultuoso que teve o seu zénite na greve aos exames da Academia coimbrã. 
Mas o movimento alastrou a Lisboa e ao Porto que eram, ao tempo, as únicas cidades com ensino superior universitário (se já havia em Évora, peço desculpa, mas teria ainda muito pouca gente). 

No Porto, eu frequentava o 2º ano, que era também o segundo dos três chamados preparatórios e que eram leccionados na Faculdade de Ciências. Só depois faria os dois últimos anos, na Faculdade de Engenharia, à rua dos Bragas. 
E, embora longe do vigor contestatário da cidade do Mondego, foram-se fazendo uns comícios (só depois da revolução de 25 de Abril é que percebi que o Partido Comunista já estava por trás das movimentações). 
Estes realizavam-se sobretudo no átrio interior da entrada da Faculdade de Ciências. 
A frontaria do vetusto e bonito edifício estava voltada para o largo dos Leões (oficialmente é a praça de Gomes Teixeira), com o seu grupo escultórico no meio do pequeno lago e os tapetes de relva bem verdinha. 
Atravessando a entrada principal com a sua larga e pesada porta de ferro e vidro, podíamos ver o átrio e, ao fundo, duas escadarias muito largas, em pedra, que conduziam ao andar superior. Entre ambas existia um estreito espaço ocupado por uma secretária de madeira e uma cadeira para se sentar um funcionário. 
Pouco visíveis da entrada e muito perto das escadas, nasciam lateralmente dois corredores mal iluminados que davam para a zona da Química, um deles, e para a da Mineralogia e Geologia, o outro. 
Pois era nessas escadarias que, quasi todos os dias, havia uns quantos colegas mais activos politicamente que faziam as suas intervenções oratórias de mal dizer do regime, do governo, da guerra colonial, da falta de liberdade e democracia e de tantas coisas a que o salazarismo-marcelismo fornecia múltiplos argumentos. 
E o maralhal quando lá passava ficava a ouvir durante algum tempo, aplaudindo as passagens mais empolgantes. E depois ia à vidinha. 
Mas não eram só os antifascistas quem tinha voz. 
O Zé Gordo, um tipo anafado de óculos verdes, graduado da Mocidade Portuguesa e defensor assumido e convicto do regime, também falava para uma plateia onde tinha alguns (poucos) apaniguados e muitos mais mirones. Quando era aplaudido pelos colegas situacionistas, logo os apupos se ouviam bem mais alto e, alguns democratas ainda pouco esclarecidos, mandavam-no calar ou ir para a rua. 
Confesso que admirava a coragem do sujeito. 

E chegamos ao dia D. 
Melhor, dia P, pois estava convocado um plenário para discutir qualquer coisa que já não sei o que era. 
O átrio estava prenhe de malta. Rapazes e raparigas, naturalmente. Nas escadas de pedra postavam-se os activistas da luta anti-fascista, agora já reconhecidos por todos. 
Eu estava mais ou menos a meio com o meu colega e amigo Fernando Aguiar. 
A sessão começou às três da tarde. 
Discursos, aplausos, apupos quando se falava no Marcelo, no Thomaz ou no regime e, a certa altura, ouviu-se uma voz a dizer. 
- A polícia de choque chegou! 
- Ninguém arreda pé! – disse um dos líderes. 
Mas o plenário continuou como se o alerta não tivesse sido ouvido. 
Sinceramente, não me pareceu que houvesse alguma intervenção policial, pois tudo continuava a decorrer com bastante calma mas, pelo sim pelo não, fui magicando na táctica a seguir. 
Sair dali era uma vergonha. E eu também era do reviralho, que diabo. E não era nenhum cobardola. Havia que enfrentar a situação de frente mas com inteligência. 
E que decidi fazer? 
Partindo do princípio que os agentes não eram muito dotados intelectualmente e que, pensava eu, batiam no que mexia, o melhor seria estar quieto. Melhor ainda: poderia dar-me uns ares de informador da polícia política (PIDE), fazendo uma cara de quem está a apreciar o comportamento de uns e outros. E olhar sempre os monos nos olhos. 
Passados uns bons dez minutos, e vindos dos dois corredores que atrás referi, irromperam a correr pelo átrio uma boa quantidade de agentes com cassetetes no ar e capacetes na cabeça. Ainda não se usavam os escudos de plástico transparente. 
O pânico foi geral. Muitas meninas, como é habitual nestas coisas, começaram com gritos mais ou menos histéricos. 
Como não entrara polícia pela porta principal, foi por ela que os estudantes começaram a sair. 
Mas eu mantive a minha táctica. Curiosamente, o Fernando procedeu exatamente da mesma maneira, sem previamente termos feito qualquer combinação. Só quando a zona estava quasi vazia é que ele me fez um sinal para sairmos, 
Ninguém nos tocou. 
Nos relvados dos Leões estavam imensos contestatários, sentados ou em pé, a insultar os polícias. Dirigimo-nos calma e firmemente para a porta onde já estavam a juntar-se os invasores. 
Mal pus um pé na rua… 
Pumba! 
Apanhei com um pedaço de relva, com as raízes cheias de terra, em cheio na cara. 
Era dirigido aos monos mas eu é que levei com o torrão nas trombas. 
Porra! 
Então a polícia não me agrediu e foram os antifascistas a fazê-lo? 
Fiquei pior que estragado. 
Mas compreendi e perdoei de imediato. Solidariedade académica e antifascista acima de tudo. 
Entretanto, eu e o Fernando dirigimo-nos para o passeio onde ficam as igrejas do Carmo e das Carmelitas, com o intuito de chegarmos ao bar de Letras onde a malta mais amiga se juntava diariamente. 
Eis que olho para trás e vejo um chui a correr atrás de nós com gestos ameaçadores. 
Toca a aplicar a mesma dose. Paramos, olhamos o homem bem de frente com cara de poucos amigos, e não é que ele dá meia volta e manda uma cassetetada numa velhinha que ia a correr? 
A tese foi completamente confirmada pela experiência. 
Chegados ao bar, contamos as ocorrências com um acento triunfal. 
E havia razões para isso. 

E assim começou e acabou a minha actividade como antifascista.
Ou será que qualquer dia me lembro de outra ação heroica que tenha praticado e, quem sabe, me torne credor de uma daquelas medalhas que o Presidente da República distribui no 10 de Junho? »

Publicado no seu blog Eu sou louco


30.9.12

Nota de Rodapé - Setembro 2012

Efeméride: na passada sexta-feira o blog atingiu as 200 mil páginas visitadas. Bem sei que foi ao fim de 790 mensagens publicadas e de alguns anos, mas já lá chegou! 

Torna-se cada vez mais difícil a actualização de fotografias em algumas ruas já publicadas, ainda não sei se o método utilisado é o melhor. Para mim é o mais simples e rápido.

Nova etiqueta: após ter hesitado, durante bastante tempo, começou há pouco tempo a aparecer uma nova etiqueta: Maçonaria. Sem preconceitos. Se as coisas estão escritas também tenho o direito a divulgá-las.

Não me tornem a perguntar pelas minhas fontes, por favor. Desde que sejam da internet, terão direito à referência. Outras há dos livros que li. Também tenho a minha memória e aquelas das pessoas com quem convivi. Este blogue nunca pretendeu ser um trabalho universitário. Surgiu num momento em que poucas pessoas se interessavam pouco pelas ruas da cidade. Os textos serão mais uma manta de retalhos que auxiliarão os leitores a encontrarem "pontas" para viajarem pela cidade.




18.2.09

Sai um cimbalino e um Porto para a mesa do canto


MAJESTIC. Em plena Rua de Santa Catarina, mantém a traça original e os interiores que sempre atraíram assim as atenções dos turistas. É um dos cafés mais emblemáticos do Porto


«Amáveis instituições de utilidade social, os cafés do Porto subsistem e sorveram a renovação apropriada aos novos hábitos. Outros, haveriam de degenerar ou desaparecer com as personagens que adoçaram histórias.

Funcionários públicos e privados, homens da banca e de má nota; estudantes e calaceiros, damas de pusilânime trato e de duvidoso porte, esta a nata de intermináveis horas palradeiras dos cafés da cidade. Outrora, as orquestras pautavam a convivência até o cheirinho a pão quente anunciar novo dia. Era o leque e os salamaleques de uma Belle Époque, cavalheirismo de paletó esbugalhando o olhar em setins e sombrinhas bordadas. Havia esta coisa simples e preciosa, o tempo.

Camilo, nascido há 180 anos, assestava a luneta no Guichard, quando não, refúgio no Chalet Suíço. Já Antero de Quental polemizava no Águia d´Ouro, onde um vinho velho seco viajava sob as queixadas de Arnaldo Gama e Júlio Dinis, que inseriu o nome do café no romance Uma Família Inglesa. Ramalho Ortigão e Sampaio Bruno entretinham-se a jogar dominó no Café Brasil, fundado em 1859, e ainda vivo, junto à estação de São Bento.

No corpo do burgo havia o republicano Sport, o Suísso, tentação de Guerra Junqueiro, o luxuoso Portuense, o Excelsior, o galante Nacional Palace, o sumptuoso Monumental, com orquestras e tômbolas. A evocar, ainda, o Lusitano, aberto em 1853, famoso pelos sorvetes e chá à inglesa, Tivoli, Astória, Saban, Royal, Rialto, com frescos de Abel Salazar e Palladium (actual Fnac), projecto de Marques da Silva, e dotado de grandes áreas de bilhar e dancing.

Pontificava em tais ambiências um vocabulário típico, sucedendo em 1955 Rebelo Bonito se referir, na revista Douro Litoral, à linguagem dos empregados de café. O fino (imperial), o café com cheirinho (borrifado de bagaço, oferta da casa), o galão (copo com aro e pega levando café com leite) e, claro, o cimbalino, alusão à marca da máquina de café. Assim, ao pedir-se um cimbalino marcava-se a diferença do café de saco.

Em cada café uma cratera de biliosas discussões, pousio de promessas amorosas, barricada de gente do mesmo partido ou clube. Tiques intelectuais e vendas de propriedades também remoinhavam entre vozeadas e unha comprida para quebrar a cinza do tabaco. E num frenesim mecanizado, os graxas corcovados, enquanto o gravateiro tentava impingir modas e o menino vendia O Gaiato, da obra do Padre Américo.

Na Baixa deram brado certas senhorecas que tinham a costumeira de beber "chá frio", verde branco servido em bules, e porque melhor convinha ao disfarce, bufavam na frescura oriunda das latadas de Amarante, em vez dos campos de chá chineses.

Com a evolução dos viveres, dos interesses imobiliários, os cafés esfumaram-se ou tiveram de render--se à adulteração. A "snackbarbarização". Casos do Embaixador, do Imperial, vindo ao mundo corria 1935, e onde se interpretaram obras de Wagner e Rossini, e de A Brasileira, inauguração em 1903, com o magnífico pára-sol de ferro e vidro, agora restaurante e Il Caffè di Roma, de uma cadeia de franchising. Que pena! Triunfou a pressa, o balcão, até os avisos "É expressamente proibido estudar neste local", parecendo que a malta nova transporta sarna ou qualquer maleita transmissível.

Viva o Estrela de Ouro e o emblemático marco de correio no interior do estabelecimento, o Orfeu, o Orfeuzinho. Viva o Ceuta, o Progresso, o aromático café de saco, o café dos professores. Viva o Universidade, o "Piolho" e as placas de mármore de final de curso nas paredes. E viva o Diu, o Avis, o Bela Cruz, junto ao Castelo do Queijo, também restaurado. Portos de encontro da cidade consigo própria, os cafés são ainda derradeiros monumentos de afectividade.»

alfredo mendes
Fotografia de Ursula Zangger

in Diário de Notícias

14.2.09

História de uma rua que é dos nossos dias




A fotografia que ilustra esta crónica foi-me enviada por um leitor acompanhada da seguinte pergunta " sabe dizer-me onde é isto ?"

A resposta não é difícil porque na foto há elementos à vista que ajudam, facilmente, a identificar o local.

Trata-se do troço da Rua de Sá da Bandeira junto ao cruzamento com a Rua de Fernandes Tomás.

Basta olhar com atenção para ver, em plano recuado, a cúpula da torre da capela da Senhora da Boa Hora, também conhecida por capela de Fradelos; e, antes da torre, a vemos a casa esqueleto para exercício dos bombeiros de quando os Sapadores tinham o seu quartel na Rua de Gonçalo Cristóvão.

Vale a pena falar um pouco da história da Rua de Sá Bandeira que começou a ser construída três anos depois de terminado o Cerco do Porto, ou seja em 1836.

O primeiro troço que se construiu da nova artéria foi aberto ao longo da cerca do convento dos padres da Congregação de S. Filipe de Nery. Esse troço é a actual Rua de Sampaio Bruno. Inicialmente deu-se-lhe o nome de Sá da Bandeira. Isso aconteceu em 1837. Aquele bravo militar que combatera no Cerco ainda era vivo e a Câmara do Porto teve que lhe pedir autorização colocar o seu nome numa artéria da cidade. Sá da Bandeira anuiu ao pedido.

O convento dos Congregados, de que apenas resta a igreja, ocupava todo o quarteirão que envolve a zona nascente da Praça da Liberdade e a Rua de Sá da Bandeira, e estendia-se muito para além da actual Rua de Sampaio Bruno ao longo de uma estreita viela que corria paralela ao muro da cerca e que por isso se chamava dos Congregados. Ainda existe, agora com a designação de travessa. Ligava a igreja do referido mosteiro à desaparecida Quinta do Laranjal em cujos terrenos se viria a abrir, anis mais tarde, uma artéria que começou por se chamar Rua do Bispo, por serem propriedade da Mitra os terrenos da aludida quinta, depois deram-lhe o nome de D. Pedro, o quarto, claro, com a implantação da república passou a ser designada por Rua de Elias Garcia. Desapareceu com a abertura da Avenida dos Aliados.

Mas foi da Rua de Sá da Bandeira que me propus tratar. Voltemos, portanto, ao ponto de partida.

Antes porém, mais uma informação que ajudará o leitor a perceber melhor de como se processou a urbanização desta parte da cidade. Até 1836, ano em que se deu inicio às obras para a abertura da rua que viria a ter o nome de Sampaio Bruno, na parte da cidade compreendida entra as ruas de Santa Catarina, Bonjardim e Formosa, havia apenas a Rua do Bonjardim, que descia até muito perto da igreja dos Congregados; e as vielas da Neta, das Pombas e dos Tintureiros. Esta última é a actual Travessa do Bonjardim; a Viela das Pombas á a actual Rua de António Pedro e que antes se chamou Travessa do Grande Hotel. A Viela da Neta era uma estreita e comprida artéria que descia desde a Rua Formosa até um local da actual Rua de Sá da bandeira que podemos situar em frente ao café A Brasileira. Essa viela desapareceu quando, em 1875 se começou a construir a parte da Rua de Sá da Bandeira desde a Rua do Bonjardim, junto à Viela dos Congregados, até à Rua Formosa. Da Viela da Neta ficou um pequeno apontamento a que se deu o nome de Travessa da Rua Formosa, e que fica mesmo em frente ao palacete que foi do conde do Bolhão e fazia ligação com a Rua de Sá da Bandeira. Escrevi "fazia" e escrevi bem porque a travessa encontra-se fechada ao trânsito e a peões e temo que venha a desaparecer com as obras que estão projectadas para aquele sítio.

As obras para a abertura da nova rua até à Rua Formosa foram muito demoradas por causa das expropriações que tiveram de ser feitas, apesar de haver ainda, entre a Rua de santa Catarina e a tal Viela da Neta, muitos terrenos de cultivo, hortas e pomares pertencentes, na sua maior parte, a D. Antónia Adelaide Ferreira, a célebre Ferreirinha da Régua.

Foi já no dealbar do século XX (1904) que se começou a falar na construção da parte da nova artéria, entre a Rua Formosa e a Rua de Fernandes Tomás. No entanto as obras só começaram, efectivamente, no ano de 1911.

Quatro anos depois projectava-se um novo alongamento da rua, mas para o Sul. Havia um projecto camarário que previa o alargamento e modernização da medieval Rua do Bonjardim, na parte que ia dos Congregados à entrada da actual Rua de Trinta e um de Janeiro. O projecto vingou. Alargou-se a parte inferior da Rua do Bonjardim que ficou a ser uma continuidade da Rua de Sá da Bandeira. Estávamos em 1916.

O prolongamento da Rua de Fernandes Tomás até à Rua de Gonçalo Cristóvão teve inicio em 1924. Para tanto muito contribuiu uma tragédia que ficou memorável na cidade daquele tempo.

No dia 26 de Julho de 1924 um violento incêndio destruiu totalmente três prédios da Rua de Fernandes Tomás. Foi o pretexto para se dar continuidade ao prolongamento da Rua de Sá da Bandeira para Norte. A demolição do que restou dos imóveis calcinados abriu, por assim dizer, caminho para a nova empreitada.

Germano Silva
in Jornal de Notícias

28.1.09

Cafés do Porto - A Brasileira

Nos meus arquivos de artigos de jornais encontrei este publicado há meses no Jornal de Notícias.

Sou de uma geração que ainda conheceu os últimos suspiros dos grandes cafés da cidade, em que os cafés eram uma razão de serem de certos percursos da cidade. Cafés sem televisão, cafés onde regularmente as pessoas se encontravam, onde se tratavam de negócios e comércios, onde se estudava ou onde se namorava.

«A notícia de que "A Brasileira" corre o risco de desaparecer, a concretizar-se, será mais uma machadada no já tão depauperado património histórico do Porto. Não é possível dissociar a história do antigo café da baixa portuense, da vida cultural, cívica e política da própria cidade, dos últimos cem anos. Adriano Teles, antigo farmacêutico da Rua do Bonjardim que, em Minas Gerais, no Brasil, para onde emigrou nos finais do XIX, se dedicou ao negócio do café, fundou "A Brasileira" em 1903, no regresso ao Porto, com o objectivo de criar e difundir uma marca própria de café. O acto inaugural do novo estabelecimento constituiu um acontecimento social sem precedentes na cidade. Foi de tal modo elevado o número de pessoas presentes que, contam as notícias da época, houve necessidade de requisitar dois polícias para regularem o trânsito que se tornara caótico. Logo após a inauguração, e durante 13 anos consecutivos, com o intuito de difundir a nova marca, foi servido gratuitamente café à chávena aos balcões de "A Brasileira". A pouco e pouco o novo estabelecimento foi-se impondo no mercado ao mesmo tempo que as sua s salas se ia transformando em ponto de encontro de tertúlias culturais - das mais animadas da baixa portuense. O edifício actual é dos anos 30. Foi desenhado pelo arquitecto Januário Godinho e decorado com esculturas de Henrique Moreira, espelhos franceses de Max Igram e decorações de alabastros de Vimioso. Inaugurou-se em Março de 1938. Com o titulo de "A Brasileira", a firma proprietária do café publicou, desde praticamente o início e até aos anos 40, um quinzenário. Nas décadas de 50 e 60 era um lugar onde se reunia a nata dos literatos, jornalistas, políticos e gente do Teatro. Com uma curiosidade os homens da Esquerda sentavam-se ao lado direito; e os da Direita ocupavam as mesas dispostas no lado esquerdo. Que pena que um local com tanta história possa vir a desaparecer»

31.12.08

O sítio onde se vendia o pão de trigo da terra

As padeiras vinham de Valongo encarrapitadas em burros e com enormes canastras no dorso do animal


Os velhos alfarrábios ensinam-nos que o planalto onde, nos nossos dias, se localiza a Praça da Batalha era, ainda nos séculos XVI e XVII, constituído por várias propriedades e campos de cultivo. Num desses campos, o de Lamelas, costumava parar a célebre procissão do Corpus Christi em que "os hortelãos e lavradores da freguesia de Santo Ildefonso" participavam, em lugar do honra.

No planalto a Ocidente, ou seja, no lado oposto, os terrenos compreendidos entre a antiga Porta do Olival e as praças hoje denominadas de Carlos Alberto e de Gomes Fernandes eram áridos e secos. Quer dizer: num lado havia bucolismo, hortas verdejantes, jardins floridos; no outro crescia o vime, um ou outro carvalho e oliveiras à sombra das quais trabalhavam os cordoeiros. A cordoaria do bispo começou a funcionar por aquelas bandas já no século XIV.

Curiosamente, é no lado Oriental que ainda hoje encontramos, na toponímia local, resquícios desse longínquo passado: Rua das Oliveiras e Largo do Moinho de Vento, são dois exemplos. Há um documento do século XVII, referente a "umas estalagens nos Ferradores" (actual Praça de Carlos Alberto) que mencionam um "Caminho do Moinho de Vento" que não deve ser outro senão aquele que, em 1647 (ano a que se refere o referido documento) partia "…do terreiro e ermida da Graça para a estrada de Santo Ovidio", hoje Rua dos Mártires da Liberdade. O antiquíssimo caminho do Moinho de Vento correspondia, como o leitor facilmente adivinhou, à Rua de Sá Noronha dos nossos dias.

Dentro do contexto urbanístico deste planalto, o Campo da Via Sacra, como era denominada a actual Praça de Guilherme Gomes Fernandes, era um dos mais concorridos logradouros destes sítios. Tinha aquela designação porque era ali que se situava a última estação de uma Via Sacra. Por isso, também era conhecido por Calvário Velho para se distinguir do novo que ficava na actual Rua do Dr. Barbosa de Castro, à Cordoaria. Devido à proximidade com o extinto convento das Carmelitas de S. José e Santa Teresa, este espaço também teve a designação de Largo e Praça de Santa Teresa. E foi exactamente aqui que se realizou a célebre feira do pão a que alude um leitor em amável carta que me dirigiu, perguntando quando começou esse mercado e em que ano terminou.

A tradição, no Porto, da venda de pão em feiras é muito antiga e não se sabe bem quando começou. Mas sabe-se, por exemplo, que já a 14 de Março de 1584 era publicado um acórdão municipal, se assim se lhe pode chamar, em que se determinava que "as medideiras da feira do Pão, messão em gamellas fora das casas no meio da praça, quando não chover, sob pena de multa…" Esta lei, se assim pode dizer-se, que obrigava as "medideiras" a trabalhar na praça e que tinha por finalidade impedir roubos ou outras falcatruas, ainda estava em uso quando, nos meados do século XIX, ainda se fazia a feira do pão no antigo Largo de Santa Teresa e a da farinha, na Praça dos Voluntários da Rainha, actual Praça de Gomes Teixeira. No ano seguinte (1585), foi publicada nova legislação, desta vez contra "as pessoas que misturarem o pão trigo de fora com o da terra e que quem vender hum não possa vender o outro…"

Nos meados do século XIX, a feira do pão funcionava no espaço da actual Praça de Guilherme Gomes Fernandes que, segundo relatos da época, mantinha a configuração geométrica de um triângulo mas que se assemelhava mais a um adro de igreja do que a um logradouro público.

As barracas onde se vendia o pão estavam dispostas ao centro do amplo terreiro e, embora o mercado fosse mais concorrido às terças-feiras e sábados, por causa de outras feiras que se realizavam na cidade, havia quem ali viesse todos os dias vender o célebre pão da terra confeccionado com farinha que era moída nos moinhos a água da região de Valongo. Esta era, efectivamente, a terra do pão. Era de lá que vinham as padeiras, encarrapitadas em burros com duas enormes canastras sobre o dorso do animal cheias do saboroso pão da terra. O produto mais procurado eram os célebres "pães de Valongo" que pesavam cerca de meio quilo e eram vendidos, nos finais do século XIX, a 75 reis cada um. Mas a variedade era imensa e para todos os gostos. Vendiam-se também, e em abundância, o nosso muito conhecido "pão molete", regueifas, tosta (doce e azeda) boroa, pão podre, pão coado, biscoitos de várias qualidades e feitios como os de argola, que eram muito procurados por moços e moças dos arrabaldes.

O rápido desenvolvimento urbanístico da cidade e, em especial, do chamado Bairro das Carmelitas ditou o fim da pitoresca feira do pão. Nos começos do século XX, os abarracamentos começaram a ser demolidos e as ladinas padeiras de Valongo instalaram-se na ala sul do Mercado de Anjo, entretanto também já desaparecido. Coisas da vida de uma cidade...


Germano Silva

Publicado no
Jornal de Notícias



29.11.08

A antiga Viela da Neta

«Falo no texto ao lado da desaparecida Viela da Neta. Era, segundo relatos dos jornais da época, um lugar "esconso, tortuoso e imundo". Estabelecia uma ligação entre a Ria Formosa, nas proximidades do Bolhão, e a Rua do Bonjardim, junto aos Congregados. Teve várias denominações, na opinião de Andrêa da Cunha e Freitas Viela da Fonte da Neta; Viela da Neta; Viela da neta, junto à quinta do pai Ambrósio; Rua da Neta; Rua do Pai Ambrósio; Quinta da neta; Viela do Pai Ambrósio; e Quinta da Viela da Neta. Quem terá sido esta Neta, ninguém o soube ainda dizer. Mas é bem possível que a referência diga respeito a uma neta do tal pai Ambrósio. Quem assim pensa é, ainda, Cunha e Freitas que alicerça essa hipótese na leitura que fez de um documento do ano de 1774 em que se alude à "rua e viela da neta do pai Ambrósio…" A Viela da Neta era ladeada, por alturas da Cancela Velha, pelas traseiras do quintal do palacete de D. Antónia Adelaide Ferreira que vivia no Largo da Trindade. Havia um portão de ferro junto do qual a Ferreirinha vendia ao público alguns produtos hortícolas e frutas provenientes das suas propriedades.»

Germano Silva

Jornal de Notícias

23.11.08

Da Boavista à Trindade

Aqueles que gostam de ler histórias da História do Porto não podem deixar de percorrer, com alguma frequência, os alfarrabistas portuenses que os há espalhados por muitas locais da centro tradicional da cidade. É que, não o fazendo, arriscam-se a perder algumas preciosidades. Ora aconteceu que, há dias, ao apreciar a excelente série de obras exibidas na montra da Candelabro, ali, na Rua da Conceição, vislumbrei um pequeno opúsculo de 39 páginas sob o título "O prolongamento da Linha Férrea da Boavista à Trindade" . Datado de 1930 e dado à estampa na Tipografia Sequeira, Lda., a pequena obra foi editada pelos advogados Alfredo de Morais de Almeida e José Gualberto de Sá Carneiro, este último pai do malogrado Francisco de Sá Carneiro que foi um dos fundadores do PPD/PSD e uma das personalidades políticas mais marcantes da sociedade portuguesa post 25 de Abril.

Mas, ao fim e ao cabo, de que trata o referido opúsculo ? Nem mais nem menos do que a tentativa da Companhia de Carris de Ferro do Porto - antecessora da que é hoje a STCP - de embargar judicialmente as obras que decorriam na Avenida da França para colocação das linhas férreas no sentido de trazer até à Trindade os comboios da Linha da Póvoa que, na época, ligava também a Famalicão, à Trofa, a Guimarães e a Fafe. Os dois ilustres causídicos defenderam na barra dos tribunais a causa da então Companhia dos Caminhos de Ferro do Norte de Portugal - a dona da obra - e acabaram por vencer o pleito judicial.

Em 1927, esta última empresa, que posteriormente veio a ser integrada na CP(Caminhos de Ferro Portugueses), celebrou com o governo um contrato em que ficou obrigada a construir o prolongamento da linha férrea desde a estação da Boavista até à Trindade, um acto que foi calorosamente acolhido pela Câmara do Porto, a ponto dela se ter regozijado publicamente "por tão útil obra". O projecto ficou pronto e aprovado no final de 1928 e a 8 de Janeiro seguinte era publicado na folha oficial não apenas o projecto mas, igualmente, a declaração de utilidade pública urgente para expropriação dos terrenos necessários para o empreendimento. Meses depois, enquanto era aberto o túnel da Trindade, a Companhia decidiu instalar os carris desde a Estação da Boavista, atravessando, portanto, a Avenida da França.

Mas a Companhia de Carris de Ferro do Porto, "que se julga - diz-se na tal contraminuta de agravo - única e absoluta dona e senhora das ruas e praças do Porto, como um verdadeiro Estado dentro do Estado, lembrou-se de fazer embargar extra-judicialmente essas obras; e em seguida foi ao Juízo da 4ª Vara Cível requerer a ratificação desse pseudo embargo". Alegava que a Avenida da França estava incluída no âmbito da sua concessão, inclusivé chamando a atenção para um desenho que incluiu no processo referente à construção de uma linha ao longo daquela avenida. Nunca chegou a ser realidade. Os advogados dos "Caminhos de Ferro de Portugal" bateram-se pela sua dama e aquela acabou por poder, já com o beneplácito judicial, atravessar com os seus carris a Avenida da França. O comboio acabou por apitar na Trindade no início dos anos 40 numa gare um tanto ou quanto mal amanhada que acabou por ser definitiva até meados dos anos 90, altura em que os comboios foram substituídos pelo metro que cruza o local com duas linhas, uma delas subterrânea.

A Avenida de França conheceu, por seu turno, alterações de vulto durante o século XX. Teve uma passagem de nível que nos anos 70 foi substituída por uma passagem inferior daquela artéria portuense em relação às linhas de caminho de ferro; depois, já nos anos 90, quando da instalação do metro, foi este que foi enterrado em relação às faixas de rodagem da avenida. Ao tempo que isto já vai...

Publicado no Jornal de Notícias


10.11.08

A RUA

A rua é dos elementos mais importantes na Urbanística, como espaço canal de estruturação do processo de desenvolvimento da cidade, pois é ao longo dela que se vão ordenando as construções e fixando os sistemas de vida e, por ela, no subsolo e no solo, circulam as redes de infra-estruturas e os sistemas viários de circulação de transportes e mercadorias, para além da mobilidade pedonal ao longo dos respectivos passeios. Daí a importância deste vaso capilar do corpo urbano chamado cidade e o seu papel estruturante, funcionando em rede e criando múltiplos interstícios por onde passa o sangue revitalizador de toda a vida urbana. Sem ruas não havia cidades e sem cidades não haveria aquilo a que chamamos e de que fazemos parte, vida colectiva e estrutura societária. Toda a gente sabe isto e, mesmo que nem sempre dê atenção ao facto, tem gravado no seu sistema genético a imagem da rua e das suas funcionalidades.

A rua de que quero falar hoje é esta, mas associada a uma função que os últimos tempos lhe estão a devolver, com os riscos e vantagens daí derivados A rua política, espaço canal de extravasamento da contestação e do protesto, ingrediente complementar de afirmação da vontade democrática, no âmbito da regulamentação específica que pauta o "direito à manifestação". Há os que discordam do processo de utilização da rua para tais fins e até se incomodam com isso, mas, mesmo para esses, convém que seja dada atenção aos "sinais" vindos da rua, porque ela deve ser sempre entendida como "espaço de liberdade", se quisermos valorizar a magnífica obra de Vieira da Silva, a pintora, na sua interpretação artística libertária de homenagem ao 25 de Abril.

A rua tem andado agitada e nervosa, ultimamente, e já fica a dúvida, para alguns, de saber distinguir quem promove e movimenta esse clima que dela tem vindo a tomar conta, com espontânea independência consideram muitos, com a mistura do picante ingrediente partidário consideram os mais "escaldados" e a quem "o calo" destas coisas já viciou na apreciação ou lhes confere maior frieza de análise. Por certo, uns e outros terão razão, daí que o importante a reter é o facto, que, em si, sobreleva o modo porque e como ocorre.

É indubitável que a "rua política" está a adquirir uma nova dimensão, já não são só os experimentados e habituais utilizadores que descem até ela e com os clássicos comportamentos, mas há um novo panorama que se oferece aos olhos de quem está atento e não pode deixar de medir as consequências desta nova aragem.

A rua, como espaço de afirmação e procura de notoriedade grupal, está a mudar, a ser expressão de novos processos de agitação e agrupamento das pessoas, diria que, de novas fórmulas de intervenção e afirmação da cidadania. Mesmo sem escanotear que, por detrás disto, estejam tiques corporativos difíceis de debelar numa sociedade tradicionalmente corporativa, os sinais e os processos, e os meios técnicos de inter-comunicabilidade entre as pessoas, estão a desenhar um novo cenário de utilização da rua, que não substitui a democracia quando ela está, ou devia estar, consolidada, mas serve para lhe fazer chegar os tais "sinais" de insatisfação e desejo de correcção que os eleitos não podem deixar de levar em conta.

Do ponto de vista da cidadania não pode esperar-se, nem desejar-se, que o poder se transforme a partir da rua, numa sociedade democrática com regras aceites, mas a vitalidade de uma democracia também passa pela capacidade de reacção e de afirmação de indignação, perante medidas ou comportamentos do poder que não levam em conta a necessária exigência dialogante com os cidadãos, estruturados em organismos associativos ou de classe. Democracia pressupõe isso mesmo, diálogo e negociação, teimosamente, dolorosamente, até aos limites, se possível.

Os governos não devem nem podem funcionar e decidir face ao clima ou estado de humor da rua, mas não podem fechar as janelas dos gabinetes dos decisores ao ruído que dela provém.

Em nome da valorização social e cívica deste "espaço canal" da vida colectiva e em favor da maturidade democrática de um sistema que contém, no mesmo plano, representantes eleitos e agentes legítimos dessa representatividade electiva.

A rua, uma vez mais, está viva e é essencial ao funcionamento da cidade livre e democrática.

Gomes Fernandes
(Arquitecto, professor da Universidade Lusófona - Porto)

Publicado no Jornal de Notícias




28.10.08

Nomes e actividades de certas ruas da cidade

Na história da toponímia portuense, há um trabalho que está por fazer o levantamento dos nomes já desaparecidos de algumas artérias da cidade. Um trabalho que se nos afigura de muito interesse para o cidadão comum e de grande utilidade para os estudiosos da história do Porto. Mas esse trabalho não se deve limitar à enumeração pura e simples dos topónimos que foram erradicados das esquinas de múltiplas ruas portuenses. Será imprescindível informar sobre a sua origem e, fundamentalmente, explicar quais foram as razões que originaram tais substituições.

Em regra, essas mudanças obedecem a objectivos políticos de todo arredados dos critérios que devem ter em conta os interesses históricos do Porto. Como exemplo vou citar alguns casos servindo-me de apontamentos que em tempos coligi para um trabalho que trago em mãos sobre a zona do antigo Campo do Olival. Mas não me cingirei unicamente, a esta interessante área da cidade. Oficialmente não temos no Porto nenhum topónimo que recorde a antiga e importante actividade dos cordoeiros.

Continuamos a dizer Cordoaria quando nos referimos ao actual Jardim de João Chagas. Mas, oficialmente, aquela denominação já não existe. Este topónimo designou também uma rua - da Cordoaria Velha para a diferenciar da nova. Trata-se da artéria que tem agora o nome de Francisco da Rocha Soares.

As mudanças de nomes de ruas que mais bradaram aos céus, ocorreram em 1875 e foram produzidas através de um edital camarário. Meia dúzia de casos para amostra na zona do Campo Alegre havia a Rua dos Coutos, denominação que foi substituída pela de Beco do Campo Alegre, quando já havia a rua deste nome.

No Bonfim substituíram a curiosa e popular denominação de Travessa da Feiticeira pela de Travessa do Campo 24 de Agosto. Outra repetição, se calhar, desnecessária. Mas há mais na actual Travessa da Rua Chã funcionou a cadeia. Por isso a artéria se chamou, durante anos e anos, Viela da Cadeia. O que terá levado os "entendidos" destas coisas a substituir a antiga nomenclatura ? O local até é interessante do ponto de vista histórico. Esteve ali uma capela dedicada à Santíssima Trindade cuja construção lembrava um memorável sermão que o padre jesuíta Francisco Estrada pregou em 1546 na Porta do Olival.

E como eu gostava de saber onde ficava a Travessa Donatária, em Cedofeita? E a localização precisa da medieval Rua do Mend'Afonso e da Viela do Pasteleiro, nas imediações do actual Largo dos Lóios ?

Sabe o leitor onde ficavam no Porto as oficinas dos homens que faziam os foguetes para serem queimados nas romarias nortenhas ? Pois se não sabe poderia saber se não tivessem mudado o nome à antiga Rua dos Fogueteiros. É da actual Rua de Azevedo de Albuquerque, ali para as bandas das Virtudes. Claro que Azevedo de Albuquerque merecia ter o seu nome perpetuado numa rua do Porto. Além de professor da Escola Politécnica, foi um dos artífices da Revolta Republicana do 31 de Janeiro.

Mas não seria possível honrar a sua memória sem eliminar um topónimo que tinha inegável interesse histórico local ?

Um caso de recuperação de um topónimo antigo ocorreu nos finais do século XIX quando a ermida de S. Crispim e S. Crispiniano teve que ser demolida por causa da abertura da Rua de Mouzinho da Silveira.

Com a capela também desapareceram alguns arruamentos típicos daquela zona ribeirinha a Rua da Ponte de S. Domingos; a Rua da Biquinha, alusão a uma curioso fonte que por ali havia e cuja água, segundo antiga tradição, tinha propriedades extraordinárias que curavam certas moléstias dos olhos; e a Rua de S. Crispim.

Quando, nos finais do século XIX, se reconstruiu a capela, ao cimo da actual Rua de Santos Pousada, deu-se a uma nova artéria desta zona o nome de Rua Nova de S. Crispim. Do mal, o menos. De um documento do arquivo do mosteiro de S. Domingos retiro esta informação curiosa "… o Senado (leia-se Câmara Municipal) cedeu ao convento (dos dominicanos) a maior parte da pedreira de Belomonte até à Porta do Olival, em troca de umas casas que faziam face para a Rua da Ponte de S. Domingos, sobre e escadinha da volta que faz a dita rua para as Cangostas…"

À antiga Rua das Cangostas corresponde a Rua de Sousa Viterbo dos nossos dias. Foi um dos mais pitorescos trechos do Porto antigo da zona ribeirinha. Dessa parte da cidade velha resta o Pátio de S. Salvador onde ainda existem vestígios do medieval Hospital de Santa Clara.

Subindo um pouco voltamos às imediações da Rua Chã, a antiga Rua Chã das Eiras. E perguntamos sabe o leitor onde ficava a Calçada da Chancelaria ? Era actual Rua do Corpo da Guarda também sacrificada, em parte, com a abertura da chamada Avenida da Ponte. E mais acima, ainda, algures em Cima do Vila, ficava a Travessa dos Entrevados ou da Caridade.

Que interessante seria fazer o levantamento dos nomes antigos das artérias da cidade, incluindo, naturalmente, as desaparecidas !

Germano Silva

Jornal de Notícias




21.10.08

Cruzes e cruzeiros da devoção da cidade

«Mais ou menos a meio da Rua da Vitória, na freguesia deste nome, e na confluência da Rua do Monte dos Judeus com a Calçada das Virtudes, no típico bairro de Miragaia, há duas cruzes rudemente talhadas no granito duro da nossa região.

A primeira está sobre um muro, num recanto da artéria, meio escondida por estar envolta em arbustos que crescem livremente por efeito da chuva e do sol. A segunda serve de adorno à parte cimeira de um portal de acesso a um pequeno aglomerado populacional e parece querer abençoar o casario agachado por ali abaixo a morrer junto a S. Pedro de Miragaia.

Tanto num caso como no outro, não ressuma de nenhuma dessas cruzes, nem arte nem poesia. São coisas pequenas, muito simples, envoltas na mudez excelsa da resignação que escapam aos olhares menos atentos. No fundo são, simplesmente, um sinal de atenção dos tempos velhos e quase ninguém repara nelas.

Mas uma leitora destas crónicas viu-as e quer saber se esses humildes cruzeiros têm algum significado especial por estarem nos locais onde se encontram. Julgo que não. Ambos têm de comum o facto de estarem em sítios por onde passou a judiaria.

Consta de um velho documento que a cruz que está em Miragaia, se situa "… junto à pedra escorregadia onde ficava o almocáver , ou cemitério dos judeus…"

Uma e outra devem ter sido ali colocados nos locais onde estão , já depois da saída dos judeus daqueles bairros, com o significado, naturalmente, de que, agora, por detrás daquele muro ou para além daquela porta vive outra gente que tem a cruz como símbolo da sua fé.

Venerado pelos peixeiros

Outra questão colocada pela referida leitora foi esta "… qual a procedência do cruzeiro que encontrei no interior da capela de S. José das Taipas e qual a sua invocação... "

Trata-se do Senhor dos Peixeiros. Estava no cimo de uma rampa que dava a cesso à actual Rua da Lage, a dois passos do templo para onde foi removido, em Maio de 1869, e onde ainda se encontra, junto, portanto, ao antigo Mercado do Peixe, demolido para no seu lugar se construir o Palácio da Justiça.

Era da invocação do Senhor da Saúde e muito venerado pelos peixeiros que todos os anos, a 20 de Agosto, lhe faziam uma grande festa. Por essa altura a cruz era envolta em ricos damascos e sedas e adornada com flores e luzes votivas. A festa que assumia as características de uma típica romaria de aldeia, contava com uma banda de música e foguetes.

O Mercado do Peixe começou a ser construído em 1869, no antiquíssimo Campo do Olival, no local onde anteriormente haviam funcionado "os Armazéns chamados Celeiros da Cordoaria ou Celeiros do Pão da Cidade" criados em 1699 no mesmo sítio onde haviam estado os Quartéis Militares do Terço, destinados à guarnição da cidade.

Imposição do bispo

Até 1331 o vasto Campo do Olival era propriedade do bispo. Mas naquele ano, reinando D. Afonso IV e sendo bispo do Porto D. Vasco Martins, houve uma concertação amigável entre o rei e o prelado segundo a qual o Campo do Olival passou para a administração da Câmara passando a partir daí a ser um logradouro público.

Nesta transacção houve uma curiosa imposição feita por parte do bispo. A de que naquele local não seria nunca permitida a instalação de uma cordoaria, nem de feira, nem de matadouro, nem de igreja. Só matadouro é que não houve por ali. Do resto houve de tudo cordoaria, igreja e feira.

O Campo do Olival passou mesmo à história com o nome de Cordoaria depois que, em 1661, ali se instalaram os cordoeiros que antes trabalhavam, com as sua rodas, nas actuais ruas de Tomás Gonzaga e de Francisco da Rocha Soares que, por causa disso, se chamavam, ainda há pouco tempo, a Cordoaria Velha.

Já agora uma pequena nota acerca da Capela das Almas de S. José das Taipas. Tem esta designação porque o templo primitivo ficava na Rua das Taipas, em frente à entrada para a mosteiro beneditino, num prédio que depois serviu de armazém e que foi demolido em 1860.

O templo actual começou a ser construído em 1795 à custa de esmolas da cidade mas só ficou concluído em 1878. À Irmandade de S. José das Taipas, que zelava pelo bom funcionamento do culto nesta capela, juntou-se, em 1780, a Confraria de S. Nicolau Tolentino e Almas, que desde 1634 funcionava na igreja de S. João Novo e era administrada pelos negociantes de bacalhau.

Desta fusão resultou uma nova irmandade a das Almas de S. José das Taipas que após o desastre da Ponte das Barcas em 29 de Março de 1809, no decurso da segunda invasão francesa, passou a realizar o sufrágio anual em intenção das vitimas daquela catástrofe.»

Germano Silva
in Jornal de Notícias

18.10.08

Reconstrução da capela do Senhor dos Aflitos


«Há anos, quando se deu inicio às obras de construção da nova fase do Hospital de Santo António, por exigência do andamento da própria obra, foi demolida uma pequena capela da invocação do Senhor dos Aflitos que, desde há muitos anos, estava na cerca daquele antigo edifício hospitalar.

Algum tempo depois da demolição da capela perguntei, nesta mesma coluna, pelas suas pedras. Fundamentalmente, eu queria saber se haviam sido guardadas, com vista a uma futura reconstrução ou se, simplesmente, tinham levado sumiço - como é por norma acontecer no Porto em casos semelhantes.

Tive então, por parte da Administração do Hospital de Santo António, a garantia de que a capela seria reconstruída no renovado adro daquela instituição hospitalar.

Na passada quinta-feira testemunhei o cumprimento daquela promessa.

A capela do Senhor dos Aflitos acaba de ser reconstruída no interior da cerca do Hospital de Santo António onde, naquele mesmo dia, foi sagrada pelo bispo do Porto, D. Manuel Clemente.

E que linda que ficou no enquadramento ajardinado especialmente concebido para, digamos assim, a receber.

Numa cidade, cuja auto-estima tão mal tratada tem sido nos últimos tempos; em que a regra parece ser destruir e não construir, e muito menos reconstruir, é reconfortante verificar que ainda há quem se preocupe com a preservação do nosso património histórico.

Parabéns, portanto, ao dr. Fernando Sollari Allegro, presidente do Conselho de Administração do Hospital da Santo António, pelo empenho e pela dedicação com que desde sempre apadrinhou e acompanhou o projecto da reconstituição da Capela do Senhor dos Aflitos.

Vale a pena recordar aqui um pouco da história da Capela do Senhor dos Aflitos.

A evocação, se outro mérito não tiver, pode servir, no mínimo, para que o benévolo leitor possa aquilatar, por si só, da importância que esta ermida teve e tem para a história da cidade.

Desde praticamente a sua fundação que a Santa Casa da Misericórdia do Porto sempre acompanhou até ao local onde eram enterrados, os cadáveres dos infelizes que morriam na forca.

Um desses sítios ainda hoje é muito recordado trata-se do local onde, entre 1748 e 1763, se construíram a igreja e a Torre dos Clérigos. O sítio era conhecido pelo Campo das Malvas e também pelo cerro dos enforcados.

A partir de meados do século XVIII os enterramentos dos que acabavam os seus dias nas forcas passaram a fazer-se num dos extremos de um vasto terreno denominado Casal do Robalo, entre a Cordoaria e a Rua dos Quartéis (actual Rua de D. Manuel II), que a Santa Casa da Misericórdia havia comprado para nele construir "o hospital novo" que viria a ser o actual Hospital de Santo António.

Deve ter sido já neste cemitério que se enterraram os cadáveres dos indivíduos que estiveram implicados na chamada "Revolta dos Taberneiros" que ocorreu, como é geralmente sabido, no tempo do Marquês de Pombal e teve origem num protesto público contra a recém criada Companhia dos Vinhos do Alto Douro.

O terreno da Santa Casa confinava com uma serventia pública que viria a ter, depois, a designação de Rua dos Carrancas, mais tarde Rua da Liberdade e que é a actual Rua de Alberto Aires de Gouveia.

Tanto no Campo das Malvas como, posteriormente, nos terrenos do Casal do Robalo, a existência do cerro dos enforcados era assinalada pela presença de um cruzeiro com a imagem do Senhor dos Aflitos junto do qual ardia sempre, de dia e de noite, uma votiva lamparina de azeite.

Para protecção desta cruz os devotos daquela imagem mandaram construir uma espécie de alpendre que viria a dar origem a uma capela dentro da qual se guardou o cruzeiro com a imagem do padroeiro.

Inicialmente a capela ficava mesmo à margem do tal caminho que veio a dar origem à actual Rua de Alberto Aires de Gouveia.

Em Junho de 1857, "por conveniência urbanística", o pequeno templo, bem como o cemitério, no dia em que se celebrava a festa do patrono do hospital, foram transferidos da beira da artéria pública, onde estavam, para o interior da cerca do Hospital de Santo António.

Os enforcados passaram a ter sepultura num terreno situado atrás da capela.

Neste local esteve o pequeno templo até à sua recente demolição. Voltou agora à cerca do hospital e com ele o cruzeiro do Senhor dos Aflitos com lugar de honra no altar-mor.

A partir de 1857, ano da restauração da capela e do cruzeiro e da mudança de ambos para o interior da cerca do hospital, a data, o dia a seguir aos festejos a Santo António, padroeiro do hospital, passou a ser dedicado ao Senhor dos Aflitos em honra do qual se celebrou, durante muitos anos a fio, uma bonita festa com missa cantada, música e sermão. Agora que a capela foi reconstituída, por que se não retoma o antigo costume ?»


Germano Silva
Jornal de Notícias



13.10.08

Onde ficava o cruzeiro da Aldeia da Formiga?


Antigo campo da feira do gado


Quem pretender estudar a toponímia da freguesia do Bonfim tropeça, forçosamente, em quatro antiquíssimas quintas a do Reimão, a de Sacais, a da Fraga e a do Prado. Com excepção desta, que deu lugar ao actual Cemitério do Prado do Repouso, as outras quatro enormes propriedades foram todas urbanizadas.

A Quinta da Fraga, que em 1805 ainda pertencia à família do sargento-mor Alexandre José da Costa, deve ter começado a ser retalhada, em quarteirões, nos finais daquele ano. Ao longo dessa propriedade, que era enorme, rasgou-se, por exemplo, a Rua de S. Vítor, cujo nome foi buscar à capela desta invocação que, por alturas do Cerco do Porto, andava a ser construída na Quinta do Prado, então ainda propriedade do bispo do Porto que ali tinha a sua casa de campo ou de recreio.

Nos finais do século XIX havia uma viela que ligava a antiga estrada do Bonfim, agora rua, com o Largo da Quinta do Prado, actual Largo de Soares dos Reis.

Esse velho e tortuoso caminho rural viria a ser, posteriormente, substituído pela Rua de Ferreira Cardoso.

E era aqui que eu pretendia chegar para responder a um leitor que deseja saber que personalidade foi esta e que feitos cometeu ela para que o seu nome merecesse figurar numa rua do Porto.

Uma boa e oportuna questão a que vou tentar responder, naturalmente.

Joaquim Domingos Ferreira Cardoso, grande proprietário e abastado capitalista, em sociedade com o negociante Eduardo Ferreira Pinheiro, compraram, em 1882, por 95 contos de reis, como então se dizia, a casa e a Quinta do Reimão à família Cirne, então representada por Maria Ana Isabel de Sousa Cirne Teixeira Blanco e seu irmão António de Azevedo Cabral Teixeira Cirne.

A casa era o edifício onde hoje funciona a sede da Junta de Freguesia do Bonfim.

O brasão de armas dos Cirnes, influente e importante família portuense, um dos quais chegou a ser nosso Feitor na Flandres, figuravam no cimo da fachada principal da casa. Foi picado em 1890 e substituído por um simples adorno gravado no granito.

Nos terrenos da enorme propriedade que era a Quinta do Reimão, abriram-se as ruas dos duques de Palmela, Saldanha e da Terceira; do Conde de Ferreira e do Barão de S. Cosme; a Rua de Joaquim António de Aguiar e a de Ferreira Cardoso que foi, como atrás se refere, um dos compradores da propriedade.

Claro que muito boa gente se interrogou à posteriori, como agora o fez, também, e com toda a legitimidade, o ilustre leitor destes trabalhos, como é que foi possível incluir entre tão ilustres personalidades ligadas ao Liberalismo o nome de um individuo que se distinguiu, somente, por ser um abastado proprietário local... !

Eis aí um dos insondáveis mistérios em que a toponímia portuense é fértil.

Sacais é um dos topónimos que desapareceram, incompreensivelmente, da toponímia portuense.

Andava ligado à Quinta de Sacais, também conhecida por Quinta do Cativo, de que existe ainda uma ampla residência com seu jardim com frente voltada para a Rua de António Granjo.

Andrêa da Cunha e Freitas, na sua sempre muito apreciada "Toponímia Portuense" diz que nuns registos paroquiais de 1781, que compulsou, encontrou referências a uma Viela de Sacais da Rua do Reimão; e a uma Rua da Boavista de Sacais, junto ao Padrão do Reimão.

Corresponderão aquelas designações a uma só serventia ou identificam mais do que uma ?

Não o sabe dizer aquele probo historiador mas avança para hipótese, mais do que plausível, de que a aquela Viela de Sacais, existente já no século XVII, corresponde à actual Travessa do Bom Retiro muito desfigurada com a construção da estação do metro do Heroísmo.

Sem que, contudo, tenha perdido a ambiência e a garridice de tempos idos palpável, ainda agora, no registo de azulejos que esmaltam as fachadas de alguma das suas casas e onde a devoção popular estampou as imagens dos santos da devoção de cada um.

A Travessa do Bom Retiro mau grado ter hoje casas apenas do lado poente, ainda começa na Rua do Heroísmo e termina na actual Rua de António Carneiro, antiga Rua de Barros Lima.

Muito perto do sitio onde ainda agora confluem a referida travessa com a Rua do Heroísmo ficava um antigo cruzeiro, igual a muitos mais que a fé dos passantes fazia erigir ao longo de ruas, estradas ou simples caminhos.

Fazendo fé no que sobre o assunto escreveu Andrêa da Cunha e Freitas (e não há, pelo menos da minha parte, qualquer motivo para duvidar disso), esse cruzeiro, a que já se referem documentos de 1724, era conhecido como sendo o Padrão da Aldeia da Formiga, nome que lhe veio, naturalmente de alguma propriedade que por ali existiu com aquela designação. A cruz erguia-se do lado norte da rua e estava resguardado de intempérie por um modesto alpendre.

Com base ainda em informações colhidas pelo já citado historiador, o cruzeiro, por meados do século XIX foi levado do sitio onde o povo o venerava para o interior de uma capela da invocação da senhora da Saúde que existiu nas imediações do actual Campo de 24 de Agosto, em frente, mais ou menos, à Rua do Duque de Terceira.

Com este arrazoado, julgo ter respondido às questões mais prementes do amável leitor.


O leitor a que aludo na peça ao lado faz menção na sua missiva ao estado "degradante a que chegou o jardim do Campo de 24 de Agosto" e pergunta desde quando é que deixou de fazer-se naquele sítio a célebre Feira de Gado. Antes de mais, uma observação infelizmente não é só o jardim do Campo de 24 Agosto que está votado ao mais confrangedor abandono. A Cordoaria, o Marquês de Pombal, a Praça da República, para não ir mais longe, estão nas mesmas condições ou piores. Em tempos idos, o Campo de 24 de Agosto foi uma espécie de Manchester portuguesa, tantas e tão produtivas eram as fábricas que por ali proliferavam. No século XVIII, no Porto, ergueram-se igrejas com suas torres que faziam o encanto místico da cidade. No século seguinte, em vez de torres de templos ergueram chaminés de fábricas. Uma espécie de espigas da imensa seara urbanística surgida a par com a industrialização. Agora, a resposta à pergunta pertinente: havia duas feiras - a do gado bovino, que se realizava às terças e sextas-feiras, já funcionava em 1833 e passou, em 1868, para o Largo da Póvoa de Cima, actual Praça da Rainha D. Amélia; a de cavalos, que era mensal, só em 1892 foi mudada para a Praça da Corujeira.

Germano Silva





26.9.08

A Quinta do Covelo no tempo do Cerco


Acabo de constatar, com alguma alegria e justificada satisfação, naturalmente (é sempre bom saber que ainda há quem se interesse pela história desta cidade), que a maior parte da correspondência, e-mails, mensagens e telefonemas que recebo, por causa destas crónicas portuenses, provêm de gente moça que anda a fazer trabalhos académicos sobre o Porto.

Como é o caso da pergunta que me foi dirigida por um estudante do Secundário e que deu origem à presente crónica. A questão formulada foi a seguinte "… que batalha foi a que destruiu a casa e a capela da Quinta do Covelo ?". Comecemos pela história da propriedade.

No século XVIII, aí por 1720, a quinta, então chamada do Lindo Vale ou da Boa Vista, pertencia a um fidalgo chamado Pais de Andrade. Pela morte deste passou, por herança, para duas filhas que a venderam a um negociante chamado Manuel José do Covelo. A partir daqui fica-se a saber por que é que a quinta se passou a chamar do Covelo. No século XIX há o registo de nova mudança de dono por 1829 ou 1830, a quinta foi vendida, pelos descendentes do Covelo, a Manuel Pereira da Rocha Paranhos e passou a ser conhecida, também, por Quinta do Paranhos. O Manuel José do Covelo foi sepultado num mausoléu de pedra no interior da capela que tinha Santo António como padroeiro. O que resta dessa grande propriedade pertence, hoje, à Câmara do Porto que ali instalou um parque público. A casa e a capela, um belíssimo conjunto da Arquitectura setecentista, foram incendiadas e destruídas, em 16 de Setembro de 1832, na sequência de combates entre liberais e miguelistas, ocorridos durante o Cerco do Porto.

Logo a seguir à entrada no Porto do Exército Liberal, a 9 de Julho de 1832, os miguelistas trataram de montar, a partir do que, então, eram considerados os arrabaldes da cidade, um apertado cerco aos sitiados. Nesse sentido , criaram posições ofensivas em sítios de onde mais facilmente, através das suas peças de artilharia, lhes fosse possível atingir o centro da cidade e, ao mesmo tempo, impedir o reabastecimento das tropas liberais e dos próprios civis.

O alto do Covelo, a que popularmente se chamava "o monte", foi considerado pelas tropas absolutistas como o sítio ideal para montar a artilharia que havia de metralhar o centro do Porto e vigiar as movimentações de civis no sentido de impedir, por exemplo, que os lavradores de Paranhos introduzissem na cidade mantimentos e outros viveres através da estrada da Cruz das Regateiras. E com estes propósitos criaram uma autêntica fortificação na Quinta do Covelo.

Só que os liberais não ficaram quedos. Consta que por iniciativa do próprio D. Pedro IV as tropas constitucionais resolveram, em 16 de Setembro de 1832, desalojar os miguelistas do reduto do Covelo, a fim de ficarem com o controlo daquela zona, de grande importância estratégica para os combates que estavam para vir. Os objectivos dos liberais foram conseguidos. Uma força de "mais de 1400 baionetas", além de terem escorraçado os miguelistas, a quem causaram inúmeras baixas, ainda arrasaram fortificações e destruíram baterias e canhoneiras.

Mas por muito pouco tempo os soldados de D. Pedro lograram manter as posições que haviam conquistado. Os absolutistas contra atacaram, em Março de 1833, e conseguiram, depois de renhidos combates, com enormes perdas para as duas partes, retomar as posições que pouco antes haviam perdido. De imediato iniciaram a construção de "defesas do monte" erguendo ao redor estacadas ou paliçadas com o que pretendiam ocultar os trabalhos de fortificação que andavam a fazer. E os liberais? Que fizeram ?

Voltaram ao ataque. Numa das digressões que diariamente fazia aos locais onde o perigo mais se fazia sentir, D. Pedro passou pela Aguardente (actual Praça do Marquês de Pombal) e apercebeu-se do perigo que constituía para a sua causa o facto de os miguelistas terem retomado o Covelo e providenciou para aquela posição voltasse a ser ocupada pelos liberais. Isso aconteceu a 9 de Abril de 1833. E a delicada e arriscada tarefa foi confiada ao coronel José Joaquim Pacheco que, mais tarde, viria a morrer, em combate, na Areosa. A cidade, agradecida, deu o seu nome à antiga Praça do Mirante que é hoje a Praça do Coronel Pacheco. Uma crónica da época refere esta segunda tomada do Covelo pelos liberais, da seguinte forma "… a 7 de Abril descobriu-se a longa estacada feita pelos miguelistas desde as primeiras casas de Paranhos até às eiras do Covelo. Queriam fortificar-se ali. Não havia tempo a perder. Era preciso desalojá-los. A artilharia dos liberais começou a responder desde as primeiras horas da manhã do dia 9 e durou o fogo até ás seis da tarde. Cruzaram-se os fogos das baterias da Glória (Lapa), do Pico das Medalhas (Monte Pedral), do Sério (alto da Lapa), da Aguardente (Marquês de Pombal) e de S. Brás. Uma força de mil homens saiu fora das linhas parta tomar de assalto o monte do Covelo. Mas no dia seguinte (10 de Abril) os absolutistas voltaram com o intuito de retomarem as posições perdidas e onde os liberais haviam levantado um reduto em menos de oito horas. Estavam lá dentro apenas 200 soldados. Foram atacados por mais de 2000 do inimigo. Foram momentos decisivos. Duzentos homens livres conseguiram pôr em fuga 2000 do inimigo…"

Germano Silva



27.8.08

Procissão a Santo António que se fez no Bonfim

«Tudo começou quando eu procurava identificar sítios da cidade actual com topónimos entretanto desaparecidos. Ao debruçar-me sobre escritos relacionados com a zona do actual Largo do Padrão descobri, com alguma surpresa, a informação de que, pelos finais do século XIX, se realizava nesta parte do Bonfim uma procissão em honra de Santo António.

A princípio julguei tratar-se da tradicional festa ao Santo Antoninho da Estrada que o Rancho Folclórico do Porto, há anos, em boa hora, reabilitou de esquecimento a que fora votada.

Mas não. A festa era outra.

Eu explico sei que, algures, junto ao actual Largo do Padrão, existiu a Viela dos Capuchos; e também sei que, por meados do século XIX, a referida viela ainda era uma simples artéria estreita e sinuosa que ligava o antigo Largo do Padrão das Almas ao convento dos frades franciscanos menores da Província da Conceição (Antoninhos de Santo António da Cidade) também conhecidos por Capuchos (daí a designação da viela) em cujo mosteiro, construído no ano de 1783, nos terrenos do antigo Campo de S. Lázaro, se instalou, em 1842, a Biblioteca Pública Municipal.

Quando, em 1843, se começou a rasgar a rua que hoje tem o nome de D. João IV, a Viela dos Capuchos desapareceu, absorvida pelo novo arruamento.

O projecto da nova artéria previa que ela começaria em S. Lázaro e prolongar-se-ia até ao sítio da Cruz da Regateira, junto ao Hospital do Conde de Ferreira.

O quer não aconteceu por dificuldades surgidas com as expropriações.

Com a Viela dos Capuchos, também levaram sumiço a Rua do Poço das Patas, a Rua de Brás de Abreu, artérias que, nos meados do século XIX, integravam o tecido urbano das imediações do actual largo Largo do Padrão por onde, segundo uma antiga tradição, era costume passar uma "procissão chamada de Santo António".

E que procissão era essa? - pergunta o leitor com toda a legitimidade.

Segundo o folheto onde colhi estas informações era "uma procissão familiar...".

Tudo se terá passado no último quartel do século XIX. Um paroquiano do Bonfim, de nome António Jacinto Pinto Banha, funcionário superior da empresa dos Caminhos de Ferro do Douro e Minho, ofereceu uma imagem de Santo António, de que era devoto, à confraria do Senhor do Bonfim e da Boa Morte.

Era essa imagem que os devotos de Santo António levavam em procissão por algumas ruas da freguesia.

O folheto a que atrás me refiro cita, exactamente, o itinerário da procissão que se realizou em 26 de Julho de 1894.

Da paroquial do Bonfim, cujas obras de construção, iniciadas em 1874, tinham acabado exactamente nesse ano de 1894, ou seja, vinte anos depois, saiu "uma linda procissão" que rumou "ao antigo Campo do Poço das Patas" (actual Campo 24 de Agosto); subiu "pela Rua de S. Jerónimo" (a Rua de Santos Pousada dos nossos dias); prosseguiu pelas "antigas travessas da Alegria e S. Jerónimo", (que, uma vez unidas, vieram a dar a actual Rua da Firmeza); continuou pela Rua da Duquesa de Bragança (depois, Rua de D. João IV); atravessou o Largo do padrão das Almas, assim denominado por causa de um cruzeiro que lá existia da invocação do Senhor do Amor Divino e Almas, retirado do local em 1869; e pela Rua de 23 de Julho, hoje Rua de Santo Ildefonso, a procissão recolheu à igreja de onde havia saído.

O folheto não diz qual foi o motivo que deu origem à realização da procissão.

Como não explica a razão por que se fez a cerimónia em 26 de Julho e não a 13 de Junho que é o dia em que a Igreja celebra a festa a Santo António.

Mas contém mais dois por menores curiosos.

Um deles está relacionado com o tempo. Diz que a procissão "... saiu à rua num dia de muito calor" e que, no exacto momento em que o présbito recolhia à igreja, caiu "uma forte e refrescante bátega de água...".

Consta ainda do documento em questão que a procissão, presidida pelo padre Manuel Ferreira Coutinho de Azevedo, a cujo dinamismo de ficou a dever, em grande parte, a conclusão da actual igreja, "... era, por assim dizer, organizada em família" e que "a melhor rapaziada do Bonfim procurava, à compita, estar presente para transportar os andores, as lanternas, enfim, marcar presença e figurar no présbito solene...".

Relativamente à actual Rua de D. João IV acho que é interessante informar que ela começou por se chamar Rua da Duquesa de Bragança, em honra de D. Amélia de Baviera que foi a segunda mulher de D. Pedro, primeiro imperador do Brasil, o nosso D. Pedro IV, duque de Bragança,. Depois da abdicação do cargo brasileiro. A artéria também se chamou Rua dos Heróis de Chaves em lembrança dos combates que naquela cidade se travaram em 1912 durante as chamadas "incursões monárquicas do Norte". »

Germano Silva
in Jornal de Notícias







21.8.08

Obras que o bispo de Viseu mandou fazer na foz do Douro


«Num tomo referente à igreja e Couto de S. João da Foz do Douro, que se guarda no Arquivo Distrital do Porto, existe um códice, dos começos do século XVII, em que se fazem minuciosas e não menos laudatórias referências às obras mandadas fazer naquele lugar por D. Miguel da Silva, bispo de Viseu e abade comendatário do mosteiro beneditino de Santo Tirso a cuja jurisdição aquele couto pertencia.

Consta do documento em questão que o referido prelado mandou ali construir "a igreja de S. João da Foz, cousa mui grandiosa…"

É por demais evidente que a referência não diz respeito ao templo actual, mas sim à igreja quinhentista, a primeira no estilo renascentista que se construiu em Portugal e que desapareceu quando, no seu lugar, se levantou a fortaleza de S. João da Foz do Douro. No interior do castelo ainda se podem ver vestígios dessa antiga igreja.

O trecho atrás referido menciona também, como tendo sido mandadas fazer por D. Miguel da Silva, as seguintes obras "… um farol que já não há "; "… uma guarita dentro da água que é como baliza, a modo de padrão, para se desviarem as embarcações do penedo que está junto a ela "; e "… na Cantareira, uma ermida de Nossa Senhora, obra real e, em um lanço dela, para a parte do rio, pôs um letreiro…"

Quanto à ermida, parece não haver dúvida tratar-se da pequena capela de planta quadrada e sólida construção, que logrou resistir a mais de quatro séculos de malfeitorias, do tempo e dos homens, e chegou até aos nossos dias, sendo no entanto conhecida por "Ermida de S. Miguel-o-Anjo".

Há dois letreiros colocados "para a parte do rio". Aquele que vem referido no texto em análise, deve ser uma inscrição gravada no granito da fachada sul, agora já quase ilegível, onde em tempos se podia perfeitamente ler o seguinte " SALVOS IR RD" que quereria dizer: " SALVOS IRE ROGO DEUM " ou seja, por outras palavras, "Rogo a Deus que voltem sãos e salvos…"

Bom, e o resto ? Que "baliza", "padrão" e "guarita" eram aquelas que o bispo de Viseu mandara fazer "dentro da água" ? E que farol era aquele "que já não há…"? Pois foi preciso esperar pela segunda metade do século XIX, para que sobre este assunto se fizesse alguma luz.

Tudo começou em 1862, no decurso das obras de extracção de pedra que decorriam na barra do Douro, mais concretamente no fundo do rio. A certa altura, os mergulhadores que se ocupavam com aquelas tarefas trouxeram para a superfície uma estátua de granito que representava a figura de um homem " vestido à romana e envolto em uma capa, com uma das pontas traçadas sobre um dos braços estendidos".

As primeiras análise que se fizeram revelaram que a estátua, "de boa concepção artística", deve ter estado debaixo de água por mais de um século.

Durante muito tempo o estranho achado suscitou a curiosidade pública e muita gente, não apenas do Porto mas também das terras limítrofes, acorreu à Foz para observar a estátua.

As mulheres diziam que era um santo e queriam, a toda a força, que fosse levado para o interior da igreja paroquial. Mas o destino foi outro mandaram-no para o Museu Arqueológico do Carmo… em Lisboa.

As notícias que deram a conhecer aquele curioso achado referiram, dias depois, que, no mesmo sítio onde aparecera a escultura, haviam sido encontradas, também, "colunas, alguns capitéis e a base de uma delas…"

E logo a seguir, exactamente do mesmo sítio, foi retirada uma lápide com a seguinte inscrição latina "Michael Silvivs / Episcop Visens / Navigantion / Salvtis cavsa / Turris II Fecit / Et IIII Colvmnas / Posvit - Ann. M.D. XXX VI "

A inscrição quer diz que D. Miguel da Silva, bispo de Viseu, mandou fazer duas torres e quatro colunas para guia dos navegantes, no ano de 1536. Dois anos antes da conclusão da ermida de S. Miguel-o-Anjo. Em tempos muito recuados, os marinheiros que pretendessem entrar no rio Douro, orientavam-se através de um alto pinheiro.

Mas a árvore um dia ardeu e, em 1533, foi substituída, dizem as crónicas, por marcas de pedra colocadas mesmo à entrada da barra "para servirem de guia ás embarcações que desejassem entrar no Douro…"

Parece não haver dúvidas de que as colunas, as bases, os capitéis, a pedra com a inscrição e a estátua, retiradas do fundo do rio, a partir de 1862, deviam fazer parte de uma estrutura mandada fazer por D. Miguel da Silva para orientação dos barcos na entrada da barra.

Assim temos que todos aqueles achados devem ter feito parte do farol "que já não há", da guarita construída "dentro da água", bem como da " baliza a modo de padrão".»

Germano Silva