30.11.13

Largo dos Arcos da Ribeira

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29.11.13

Rua de S. Francisco

2013_284



28.11.13

25.11.13

Rua da Reboleira

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2013_273


A Rua da Reboleira, cuja designação data dos séculos XIII-XIV, é uma das mais típicas da zona ribeirinha da cidade, mantendo ainda o traçado tipicamente medieval. Nela se conserva um núcleo significativo de casas medievais, particularmente a nº. 59 que apresenta uma estrutura de casa-torre. 

Também na Reboleira podemos apreciar o perfil inconfundível das habitações antigas do Porto, e constatar a durabilidade da aparentemente frágil técnica da construção em tabique, que permitiu erguer, sobre um andar térreo em granito, três ou quatro andares sobrepostos que sobreviveram até aos nossos dias. 

Reboleira é a parte de um bosque ou seara, ou o lodo que se acumula no fundo da caixa onde gira o rebolo, isto é a pequena mó que gira em torno de um eixo, para amolar objectos cortantes.

Não sabemos se é esta a origem do nome da velha Rua da Reboleira, ou acaso se filia em «rebolo», de castanheiro bravo, ou ainda no português arcaico molho de lenha, ou pedra rolante.

Seja como for o topónimo deve ser muito antigo, pelo menos datando dos séculos XIII-XIV, quando se começou a urbanizar para poente do Rio da Vila. Encontramo-lo mencionado em emprazamentos de 1424, 1437 e 1476. Foi em parte mutilada quando, por 1869-1871, se começou a rasgar a Rua Nova da Alfândega. Cortaram-lhe um troço que ia até junto da muralha fernandina.

(Porto Turismo - Património Mundial - Arquivo da Toponímia)

24.11.13

Casa da Quinta do Padrão

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Esta casa situa-se no largo de Nevogilde.

O arquitecto Rogério de Azevedo ampliou-a e reformulou-a em 1925-26, sendo na altura seu proprietário Jaime d'Andrade Villares.



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23.11.13

Alminhas da Ponte

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Relevo em bronze da autoria de Teixeira Lopes.

Como se pode ver na imagem o "desastre da ponte das barcas" ocorreu em 1809. 


21.11.13

Rua da Póvoa

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O vocábulo "póvoa" designa um pequeno povoado. Penso que o nome atribuído a esta artéria nada tem a ver com a Póvoa de Varzim nem com Póvoa do Lanhoso.

No século XIX era ainda um sítio longínquo do centro da cidade por isso é que aí se instalaram algumas indústrias.




19.11.13

Street Art em Miguel Bombarda II

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Na rua das galerias também aparecem as obras efémeras...


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E o desleixo ambiente contrasta com a vontade que se tem em valorizar a cidade.




18.11.13

A Casa da Rata do CICA - III

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Terceira e última parte do texto de Onofre Varela.

<(PARTE 3)

Às 10 horas da manhã do dia que completava o meu quarto dia de
reclusão, após ser rendida a parada, o sargento-de-dia acabado de
assumir a função, cumpriu a sua primeira tarefa: abriu a porta da cela
e anunciou a minha libertação. Eu já tinha preparado os meus pertences
e dirigi-me à caserna onde os depositei na arca que cada soldado tinha
aos pés da cama. Depois fiz o que a lei militar me obrigava:
apresentei-me ao sargento da companhia: o Ginja!
Subi as escadas e parei à porta da secretaria. O sargento estava em
frente, sentado na sua secretária, provavelmente ruminando a minha
apresentação.
— O meu sargento dá-me licença?
Ele levantou os olhos para a porta.
— Entra.
Perfilei-me à sua frente, fiz a continência e debitei a ladaínha a que
o RDM me obrigava.
— Apresenta-se o soldado condutor auto-rodas 191/65,  acabado de ser
solto da prisão do quartel.
Ele já se tinha levantado quando cheguei à sua secretária, e ouviu-me
também em posição de sentido.
— Estás apresentado.
— Dá-me licença que me retire?
— Não. Espera.
Abriu a gaveta da secretária e pegou no meu desenho, dobrado em quatro.
Era mau coleccionador. Os desenhos não se dobram!
 — Quem fez isto? — E estendeu o desenho em frente do meu nariz.
— Fui eu, meu sargento.
— Tu és homem?
— Sou sim, senhor.
Ele, encolerizado, elevou a voz.
— Não és nada. És um garoto.  — Gritou — Eu podia ser teu pai…
E num acto de perfeita fúria ou loucura, rasgou o desenho em mil
pedaços. De imediato contornou a secretária e desferiu-me dois ou três
murros na cara. Senti o sabor a sangue. O interior da boca tinha
rebentado por esmagamento contra os dentes. Retomei a posição de
sentido e repeti o pedido de permissão para retirar:
— Dá-me licença que me retire?
— Desaparece!... Não quero voltar a ver-te aqui. — Conseguiu vociferar
o irado sargento, perfeitamente fora de si.
Fui ao balneário da caserna lavar a boca. A minha vontade era atirar
uma máquina de escrever à cara do Ginja… mas o violento era ele, não
era eu. Sentia, contudo, que aquele episódio de prepotência não devia
morrer ali. Toda a comunidade do quartel deveria saber do sucedido. A
agressão foi testemunhada por alguns militares, aqueles que cumpriam
tarefas na secretaria, como os escriturários, faxinas e impedidos.
Eles encarregar-se-iam de contar o que testemunharam. Mas não chegava.
Havia que fazer algo para ampliar a divulgação daquela agressão vil.
Então, numa folha de papel de máquina de escrever, dobrada ao meio,
desenhei um boneco de traço simples representando um soldado em frente
de um sargento. Na outra parte do papel, à transparência do vidro de
uma janela, copiei o mesmo desenho com algumas diferenças da posição
do braço do sargento e da cabeça do soldado. Levantando e descendo com
ritmo o primeiro desenho, obtinha-se uma ilusão animada representando
o Ginja a esbofetear-me. Fiz meia dúzia de cópias e escolhi camaradas
a quem entreguei um dos desenhos e contei a história.
— Foi assim que o sargento Ginja me partiu as ventas. Mostra isto ao
maior número de pessoas.
Um dos originais foi entregue ao sargento que afixou a caricatura. Ele
estava mal disposto com o sucedido. Sabia da atitude do Ginja e não a
aprovou. Riu com o desenho e foi logo mostrá-lo no bar e sala de
convívio da classe.
Toda a população do quartel viu o “boneco”, incluindo o comandante.
Senti que aquele meio de divulgar a agressão física com humor, foi uma
afronta terrível para o visado, que passou a ser alvo da chacota dos
seus colegas de classe. E ele não tinha processo de retaliar aquela
reacção humorística, a não ser com perseguições e represálias, o que
na tropa é sempre facílimo de conseguir de cima para baixo, mas tais
atitudes não seriam aprovadas pelos seus camaradas de classe, nem eu
as deixaria silenciadas, o que deve ter desmotivado o sargento Ginja
de as tomar.

Cada dia de prisão valia cinco dias de detenção. Quer isto dizer que,
para além dos quatro dias de cadeia, tinha de cumprir mais vinte dias
de permanência no quartel, do qual não estava autorizado a
ausentar-me. Logo, a pena a cumprir era, na realidade, de 24 dias!
A minha farda já apresentava nódoas e sujidades várias tornando-a
imprópria para enfiar no corpo. Outra farda mais limpa e dada a ferro,
tinha eu… em casa. O pior é que não podia ir lá buscá-la!
Andava com este problema de higiene a matraquear-me a cabeça, quando
ouço, na aparelhagem sonora da parada, a repetição do meu número
chamando a atenção do visado para o recado que ia ser transmitido.
Tinha de me apresentar com urgência no gabinete do comandante.
— Mau!... que fiz eu agora?!... — Interroguei-me já a caminho do corpo
principal do quartel, com porta larga e escadaria de pedra.
Subi ao primeiro andar e entrei no gabinete do Tenente-coronel Correia
Dinis, que me recebeu cordialmente e foi directo ao assunto. Era
preciso pintar um cenário. Ele queria que os espectáculos deixassem de
ter aquela parede branca com duas janelas no fundo do palco. Precisava
ali de um painel decorado, e já tinha a ideia. Queria a representação
de um soldado a conduzir uma dona Elvira, e a sigla CICA 1.
Aquele pedido só tinha uma explicação. Ele sabia que eu era
desenhador, e tal conhecimento só lhe podia ter chegado através da
caricatura do Ginja e do desenho animado!
— Aproveita este fim-de-semana para fazeres um projecto, lá em casa, e
segunda-feira mostra-mo. — Disse, como remate da conversa.
Aí estava o problema. Eu não tinha direito a gozar fins-de-semana! Sem
pensar em nada mais, respondi de imediato:
— Então peço ao meu comandante o favor de me assinar uma dispensa…
Ele olhou-me através dos óculos com lentes levemente esverdeadas e não
compreendeu a razão do meu pedido.
— Mete a dispensa à secretaria!…
— Não posso. Tenho as dispensas cortadas.
Foi então que se lembrou do meu historial.
— Ah, pois!… Tu és o tal!…
Aproximou-se da janela. Estava-se a proceder ao render da parada e o
oficial que ia tomar conta do serviço era o tenente Costa Lobo, que
exercia as funções de Comandante de Companhia. Aquele oficial era,
portanto, o meu comandante, já que eu pertencia à sua Companhia. O
Tenente-coronel Correia Dinis era comandante da Unidade, que
compreendia duas companhias.
Sem deixar de olhar pela janela, o comandante ordenou-me:
— Vai dizer ao tenente Costa Lobo que venha à minha presença.
Desci à parada e esperei o final da cerimónia de apresentação dos
militares que entravam de serviço. Quando o tenente se movimentou no
sentido de se retirar dali, abordei-o e transmiti-lhe a vontade do
comandante em querer vê-lo.
Dirigiu-se ao edifício do comando e eu segui-o. Ao reparar que o
acompanhava, olhou-me e indagou:
— Que me quer ele?
— Quer que o meu tenente me conceda uma dispensa de fim-de-semana. —
Informei, já que era esse o seu desejo, antevendo a sua possível
reacção.
O tenente Costa Lobo também me conhecia. Aquele espectáculo de
anedotas do recluso (já tinha participado em mais alguns ensaios com
novo repertório e com a repetição do sucesso da estreia), mais a
história dos desenhos e da agressão do sargento Ginja, tinham-me dado
uma fama que eu não procurei nem esperava!
— O quê? Tu foste pedir ao comandante uma dispensa?! E quem te
autorizou a falar ao comandante? Um soldado não pode fazer isso.
Primeiro tinhas que dirigir o pedido ao sargento Ginja. Ele
transmitia-mo, e eu é que falo ao comandante. Parece que queres
apanhar mais uma porrada!?…
Não lhe respondi. Sabia o que ia acontecer a seguir e ansiava por
viver esse bocado. Chegados ao gabinete do comandante, o tenente
perfilou-se e fez continência com um bater de calcanhares que ecoou
pelo corredor de pedra. Não chegou a entrar. Ainda no umbral da porta,
o comandante disse-lhe:
— Ó Costa Lobo, assine uma dispensa de fim-de-semana a esse moço, que
ele é bom rapaz…  merece.
— Sim, senhor, meu comandante.
Direito como um eucalípto, o tenente voltou a fazer a continência e o
eco do bater dos tacões encheu de novo o corredor. Depois para mim:
— Vai ao sargento Ginja que te assine a dispensa.
Saí dali apressado. O riso contido rebentava-me os pulmões. Dei uma
gargalhada ao chegar à parada e corri a preencher a dispensa de
fim-de-semana.
Entrei na secretaria e estendi a dispensa ao sargento, pedindo que ma
assinasse, sublinhando que era por ordem do comandante. Ele fitou-me
com os seus habituais olhos de espanto, mas, desta vez, também com um
sorriso arreganhado.
— O quê?!... Tu foste falar ao comandante? Quem to autorizou?! Estás
arrumado, mancebo. Parece que tão cedo não te vais libertar da tropa,
vou-te meter outra vez na cadeia…
Nesse momento o tenente Costa Lobo entra na secretaria, e o sargento,
de olhar iluminado, dirige-se-lhe, euforicamente.
— Ó meu tenente, este mancebo diz que…
O oficial não o deixou terminar a frase.
— Sim. Pode assinar-lhe a dispensa. Está autorizado.
O sorriso sumiu-se-lhe do rosto. Arrancou-me a dispensa da mão,
apôs-lhe o carimbo da assinatura e entregou-ma sem me olhar.

Agora havia outro problema. Tinha que sair a porta de armas envergando
uma farda encorrilhada e suja que era um perfeito nojo, e àquele
oficial-de-dia eu não podia apresentar-me assim. Não ia ter sorte
nenhuma com ele. Que fazer? Pedir uma farda emprestada? Era uma
solução. Fui consultar a tabela de serviço e vi que no dia seguinte,
sábado, ía entrar de oficial-de-dia o aspirante António Fernandes! A
sorte estava outra vez do meu lado, mas não podia abusar dela.
No sábado, após o render da parada, os soldados que não tinham partido
para gozo de fim-de-semana na véspera, por estarem de serviço,
juntaram-se na parada, com botas engraxadas, barba bem escanhoada e
farda bem apresentada com os metais polidos. Eu fiquei de longe a
olhá-los. O aspirante António Fernandes apareceu, olhou os soldados um
a um, mandava saír uns e voltar para trás aqueles que não se
apresentavam em condições para saír. Esperei que o último soldado se
retirasse e apresentei-me ao aspirante.
Em sentido à sua frente mostrei-lhe a dispensa e ele olhou-me de alto
a baixo. Abriu a boca de espanto, e antes que me dissesse algo,
contei-lhe o sucedido e a necessidade que tinha de ir a casa, não só
para fazer o desenho que o comandante esperava, mas para vestir uma
farda decente. Apanharia o carro eléctrico à porta do quartel e sairia
em casa, portanto não ía exibir o meu mau aspecto nas ruas da cidade.
E rematei o meu discurso:
— Se o meu aspirante não me autoriza saír, lamento, mas vou ter de
saltar o muro.
— Se fores apanhado pela polícia militar, diz isso mesmo; que saltaste
o muro. Mas não me comprometas. Eu não te vi.  — E virou-me as costas.
Estava autorizado. Fui para casa, e na semana seguinte apresentei-me
lavadinho e com um desenho para o cenário, que o comandante aprovou e
passei alguns dias na prazenteira tarefa de pintar o cenário que foi
apreciado por todos quantos o viram.
A partir dali a minha vida no quartel foi calma. Passei a ser
desenhador com lugar de trabalho junto ao gabinete do comandante, e
participava semanalmente nos ensaios aumentando a minha popularidade.
Assim foi até Setembro (1965) em que recebi ordens de mobilização,
integrei um Batalhão que foi formado em Viana do Castelo e, em
Dezembro, embarquei para Angola a bordo do paquete Vera Cruz. Mas essa
é, já, outra história.>

Onofre Varela

(Trecho do livro ÚCUA, 1966. História da minha experiência militar e
participação na campanha de Angola, à espera de editor)

_________



Posteriormente ao começo da publicação deste texto o Onofre enviou-me mais um "apêndice explicativo".


« A expressão  Condutor Auto-Rodas merece uma explicação. Ela aqui vai:

No tempo em que eu assentei praça, ainda havia, nos quarteis, carroças puxadas a cavalo. 
O CICA tinha uma dessas carroças e o seu respectivo cavalo nas cavalariças que ficavam na parte de trás 
do quartel. E, obviamente, também tinha o seu respectivo condutor, já que conduzir uma carroça era, 
também, uma especialidade.

Por isso havia dois tipos de condutores: os das carroças puxadas a cavalo, e os de automóveis.
Daí haver as designações de Condutor Auto-Rodas
e de Condutor Hipo-Rodas.

...

Já agora acrescento o seguinte:

Assentei praça em Fevereiro de 1965. A última guerra tinha terminado havia 20 anos.
(três anos antes tinha trabalhado na Litografia Invicta, na Rua Duque de Saldanha, que ainda tinha tiras de papel coladas nos vidros das janelas das águas-furtadas, que lá tinham sido postas no tempo da guerra para que. se houvesse um ataque aéreo ao Porto, e bombas caíssem nas redondezas, o papel segurasse o vidro, evitando caír em estilhaços e ferir quem passasse na rua!) (Sou velho comó caralho!... Puta que pariu!...).
E o parque automóvel que eu encontrei na tropa era exactamente igual àquele que vemos nos filmes que documentam episódios da última guerra. Os mesmos jiips, as mesmas GMC com tecto de lona... tudo era igual. O parque automóvel do CICA parecia a arrecadação da MGM de Holliwood...

As matrículas das viaturas ainda eram MG (Ministério da Guerra), mais tarde substituídas por ME (Ministério do Exército). Já eu estava em Angola quando apareceram as primeiras matrículas MX, as quais eram usadas nas novas ambulâncias. e por isso dizíamos representarem o Ministério da Xaúde !   »






E para terminar também me cumpre informar que na próxima sexta-feira dia 22 de Novembro de 2013, pelas 21h 30, na casa da Beira Alta - na rua de Santa Catarina - o autor do futuro livro contará publicamente para todos os interessados mais episódios vividos neste quartel portuense e nas matas dos Dembos, em Angola.

16.11.13

A Casa da Rata do CICA - II

2013_255


(PARTE 2)


No CICA 1 havia Juramentos de Bandeira de dois em dois meses, que era
o tempo de cada escola de recrutas. A sessão de Juramento era uma
festa e o quartel franqueava as portas à população civil. A cerimónia
decorria na parada durante a manhã, seguia-se-lhe uma prova
desportiva, e depois havia rancho melhorado. À tarde apresentava-se um
espectáculo de variedades realizado e constituído pela prata da casa,
numa sala com palco.
Na população do quartel havia sempre quem cantasse ou tocasse, e os
espectáculos eram aguardados com grande ansiedade. Para a sua
preparação havia um ensaio por semana, num determinado dia, a seguir
ao almoço. Os militares que consideravam ter qualidades para tal,
inscreviam-se e apresentavam provas nos ensaios que eram abertos a
todos, e tinham a supervisão dos aspirantes António Fernandes e
Amílcar Bessa.
Portanto, todas as semanas havia um espectáculo de variedades com a
sala a abarrotar de espectadores.
No dia em que tive de me apresentar na prisão, havia ensaio e eu tinha
decidido participar nele como humorista, o que era coisa nunca vista
naquele palco. Porém, a prisão impedia-me de concretizar. Mas a sorte
parecia estar do meu lado, embora o azar também não me largasse a
perna! O oficial que ia entrar de serviço no render da parada era o
aspirante António Fernandes, co-organizador dos espectáculos!… Era uma
boa oportunidade para me propôr participar no ensaio do dia.
Depois da cerimónia do render da parada formou-se uma fila com todos
os militares que iam entrar de serviço, para se apresentarem ao
oficial-de-dia. No final da fila estava eu, carregando uma manta,
lençóis e fronha, já que na “casa-da-rata” havia cama mas não havia
roupa.
Chegada a minha vez, fiz a continência e apresentei-me:
— Apresenta-se o soldado condutor auto-rodas número 191/65, a fim de
dar entrada na  prisão do quartel.
— Estás apresentado. Apresenta-te ao sargento da guarda. Podes retirar-te.
— Meu aspirante, preciso de lhe falar sobre o ensaio de hoje… — Ele
olhou-me interrogativamente, e eu continuei. — Tinha decidido
participar nele como humorista. Mas porque vou preso, peço-lhe que na
hora do espectáculo permita que eu saia da prisão para me apresentar
em palco.
— Estás maluco?!…
E fez-me sinal com a cabeça para me retirar.
Retirei-me sem grandes convicções.
Após o almoço, o ferrolho fez o cagaçal característico do rodar da
enorme e pesada chave, e a porta chiou nos gonzos a pedirem óleo.
O sargento-da-guarda chamou:
— 191?
Olhei-o, com ar de espanto.
— Acompanha os praças da guarda.
Meti-me entre os dois soldados que me esperavam à porta, de mauser ao
ombro, e que me conduziram à sala de espectáculos pela porta dos
bastidores. Entrei. No palco um soldado começava a ser aplaudido por
ter cantado e tocado viola. O moço agradeceu os aplausos, retirou-se,
e o aspirante António Fernandes apontou-me, com o queixo, a escada de
acesso ao tablado.
— Sobe. É a tua vez.
Subi e percorri o espaço até à boca de cena. Parei em frente do
microfone. A sala estava cheia. Não levava instrumento nem ía
acompanhado por qualquer músico. A assistência olhava-me em silêncio,
talvez intrigada, porque para cantar faltava a música.
Contei uma anedota, e o público explodiu em gargalhada! Contei mais
uma, e outra, e talvez meia dúzia. Os soldados aplaudiam euforicamente
e eu sem perceber se as anedotas tinham mesmo aquela piada toda!
Quando saí entre os dois praças da guarda para regressar à prisão, as
palmas ainda não tinham parado de ecoar e ouvia-as na parada a caminho
da “casa-da-rata”!
Fiquei contente por ter sido recebido com tanto entusiasmo. Anedotas
não era coisa que alguma vez se tivesse ouvido naquele palco. Talvez a
novidade e a irreverência do humor motivassem aquela reacção tão
calorosa e animadora para continuar na senda dos espectáculos
caseiros.
Pelo meio da tarde abriu-se a porta da cela. O Augusto, um camarada de
Braga, foi-me levar um pão com chouriço, uma cerveja e um maço de
tabaco, por ordem do comandante! Era o prémio que o Tenente-coronel
Correia Dinis dava aos intervenientes naqueles espectáculos semanais.
O Augusto informou o cantineiro da prisão do contador de anedotas, e
reivindicou a minha parte para ma entregar.


A “casa-da-rata” era um pequeno quarto com estreita janela gradeada, e
recheado com  um beliche de três camas, uma mesa de madeira com tampo
demasiado pequeno, e uma cadeira. De uma parede saía uma torneira
sobre um lavatório minúsculo, liliputiano, proporcional à mesa. Da
mobília da cela também fazia parte um balde de zinco, meio de água.
Era o balde-sanitário. Ali os prisioneiros urinavam e defecavam. Todos
os dias, pelo fim da tarde, o balde era despejado e lavado. A tarefa
pertencia aos reclusos. A primeira vez que o fiz não pude deixar de
rir despregadamente pela situação. Dois praças da guarda, de
espingarda Mauser ao ombro, acompanhavam-me à retrete para eu poder
despejar o balde. Não resisti ao caricato da situação ao ver aqueles
soldados tão sérios e de ar tão bélico, ladeando-me, e eu com um balde
de merda na mão. Não me contive e disse-lhes:
— Não imaginava a importância da minha merda! Dois garbosos soldados
prestam-lhe honras militares!…
Rimos os três a caminho da retrete.


No meu primeiro dia de reclusão tive um companheiro: o Casqueiro.
Cumpria o seu último dia de prisão e seria libertado ao render da
parada no dia seguinte. A história que o levou àquela cela contou-ma
ele.
O quartel ocupava o gaveto formado pelas ruas de D. Manuel II e
Viterbo Ferreira, e o seu espaço confinava com as traseiras e os
quintais dos prédios da rua da Restauração, entre os quais se conta a
Porto Editora. A rua Viterbo Ferreira separava o quartel dos terrenos
do célebre Palácio de Cristal, substituído pelo Pavilhão dos Desportos
agora chamado Rosa Mota. Estava ele de serviço de sentinela na guarita
denominada “posto da Lola” — por estar próxima de uma casa de
prostituição conhecida por aquele nome de mulher — sobre o muro da rua
Viterbo Ferreira, em frente aos jardins do Palácio, e encontrou por
ali um casqueiro seco, duro como pedra, que alguém levara
provavelmente para comer durante a guarda, mas que o deixou por lá
esquecido e ninguém mais lhe mexeu. Ele decidiu arremessar aquele pão
para os jardins do Palácio, e fê-lo com tanto azar ou pontaria, que
acertou na cabeça de um visitante. O casqueiro estava duro como pedra,
e a vítima teve de receber tratamento na urgência do Hospital de Santo
António, ali a dois passos. Por isso estava preso, e também por isso
passou a ser conhecido pela alcunha: Casqueiro!


O sargento-da-guarda era a autoridade militar que mais próxima estava
dos reclusos porque a prisão se situava precisamente na
casa-da-guarda. Todos os dias havia um sargento diferente, o que se
notava no tratamento dado aos presos. Aqueles que tinham um espírito
mais severo, mais militarista, fechavam a porta da cela, abrindo-a
apenas quatro vezes por dia para nos levarem as três refeições e para
despejo do balde-sanitário. Os outros, os mais liberais, mantinham a
porta da cela aberta e os prisioneiros conviviam com os
praças-da-guarda. Num desses dias, apanhava eu um pouco de sol
encostado ao umbral da porta, a ver os meus camaradas partirem
cascalho e a fenderem a terra dura da parada com picareta. Olhei-os,
sorridente, e chamei a atenção dos mais próximos para lhes dizer:
— E eu é que estou a cumprir pena, hein?!…


Para passar o tempo, lia. Mas também desenhava. Tinha levado um bloco
de papel de desenho e fiz um cartaz, tipo Far-West, onde desenhei a
caricatura do sargento Ginja, com as palavras: “Procura-se. Ginja, o
Terrível. Dão-se três meses de pré a quem o entregar vivo ou morto”.
Naquele dia o sargento-da-guarda era do lote dos porreiros. Daqueles
que mantinham a porta da cela aberta e permitiam o convívio. Viu o meu
desenho e soltou sonoras gargalhadas. O sargento Ginja não era
apreciado nem pelos seus camaradas de classe! Perguntou-me se podia
mostrar aquilo a outros sargentos. Que sim, disse eu. Ele foi para a
porta da casa-da-guarda e mostrou-o aos sargentos e oficiais que
passavam. Alguém lhe sugeriu a afixação do desenho no painel das
ordens de serviço e informações gerais, que ficava numa vitrina na
parede do corredor da entrada. Ele achou boa a ideia, e pediu-me
autorização para o fazer.
— O meu sargento esteja à vontade, — respondi-lhe.
Horas depois o desenho tinha desaparecido. O sargento, de porreiro
passou a bera. Quiz saber quem o retirou. Depois informou-me:
— Ó pá, temos um problema. Quem levou o desenho foi o sargento Ginja.
— Óptimo, não o sabia coleccionador!… — Foi a minha reacção imediata.


(FIM DA PARTE 2)

Onofre Varela


Actualização em julho de 2017:

Aqueles que se interessam pelo desfecho deste texto podem continuar a ler a última parte




O livro "ÚCUA, 1966" aguarda um editor. Nesta obra o Onofre conta a sua experiência militar e participação na campanha de Angola. 

15.11.13

A Casa da Rata do CICA - I

2013_204



Após a publicação aqui, no passado dia 5 de Outubro de uma mensagem sobre o C I C A - o quartel da rua D. Manuel II, o Onofre Varela escreveu-me duas linhas a falar do quartel onde ele tinha feito a recruta.
Em conversa posterior, esta semana, e a meu pedido, prometeu enviar-me para publicação aqui em ante-estreia, o texto onde conta a sua passagem pela "Casa da Rata" do dito quartel.

Hoje é publicada a primeira parte, as outras duas serão publicadas nos próximos dias.

O livro "ÚCUA, 1966" aguarda um editor. Nesta obra o Onofre conta a sua experiência militar e participação na campanha de Angola. 

Varela amigo, obrigado pela tua participação activa neste blogue. 


Na Casa-da-Rata do CICA e suas consequências



A vida militar que me esperava na década de 1960, era feita
surrealidades que me espantavam. O respeito devido à hierarquia não
precisa de ser sublinhado com posições ridículas, subservientes e
redutoras da personalidade que cada um tem e deve esforçar-se por
manter. Eu respeitava o meu pai, reconhecia-lhe autoridade e
obedecia-lhe, e no entanto falava-lhe com à vontade. E aqueles
espantalhos de galões que me comandavam não eram mais do que o meu
pai. Por acaso até eram menos… na minha bitola de importâncias!…
O surrealismo militar demonstrou-se um certo dia em que me preparava
para tomar a refeição do almoço.
Depois de formar na parada e marchar até ao refeitório, entrei em fila
indiana e ocupei um lugar na mesa que me coube. As mesas comportavam
dez homens, cinco de cada lado. Em todas elas os faxinas já tinham
colocado os pratos, os talheres, a terrina da sopa e, a seu lado, a
respectiva concha. Aquele que calhasse no lugar em frente da terrina e
virado para a porta, era o chefe de mesa e tinha a tarefa de servir a
sopa aos nove camaradas. Curiosamente, naquela mesa, a concha estava
colocada no lado oposto, precisamente no lugar que eu ocupava.
O ritual da refeição era sempre o mesmo. Depois de chegados à mesa,
esperavamos, em pé, que todas elas estivessem ocupadas. Então,
fazia-se silêncio absoluto, o oficial-de-dia mandava sentar, e dava-se
início à refeição.
Naquele dia, enquanto esperavamos que o refeitório enchesse, o chefe
de mesa pediu-me que lhe chegasse a concha que estava mal colocada, a
fim de a colocar no seu devido lugar, junto à terrina. Peguei nela e
estiquei o braço para lha dar. Nesse momento uma gigantesca manápula
caiu-me sobre o fundo da nuca, quase me desiquilibrando e partindo o
pescoço! Foi o sargento-de-dia, um homem de tronco forte, de cabelo
ruivo e cara vermelha, quem me brindou com aquele descomunal cachaço,
enquanto me gritava:
— Ninguém mandou servir a sopa.
— Mas eu não estou a servir a sopa. — Respondi.
— Cala-te ou levas mais. — Foi a prepotente resposta, de olhos
arregalados e com perdigotos de saliva a sairem-lhe da boca
escancarada sobre o meu rosto, despejando-me nas narinas um mau hálito
insuportável.
Tomei a refeição em silêncio pensando naquilo. Tinha acabado de
receber um castigo do rol dos piores que podem ser aplicados:
corporal! Foi uma agressão física perfeitamente gratuíta o que o
sargento ruivo me fez, por “estar a servir a sopa”, uma transgressão
que eu não tinha cometido! Era mais uma surrealidade das várias que a
tropa tinha para gastar comigo. Então reagi do mesmo modo surreal, e
pensei: se fui castigado por uma irregularidade que não cometi, vou
ter de a cometer para que o castigo recebido tenha cabimento!
Provavelmente na vida militar é assim… castiga-se por avanço e
prevarica-se depois!
Quando saí do refeitório já tinha idealizado a minha acção.
Encaminhei-me para a porta, e, na vitrina onde se colocavam as ordens
de serviço, verifiquei o dia em que tinha tarefas distribuidas. Era no
sábado seguinte, dentro de quatro dias. Pelas 17 horas deveria formar
na parada, com “arreios”, capacete e arma, para entrar de reforço à
segurança do quartel e fazer dois turnos de sentinela. Inteirado, já
não voltei a trás. Passei pelo guarda da porta-de-armas que esboçou um
qualquer gesto, pois ninguém deveria saír do quartel sem autorização
escrita apresentada ao sentinela ali de serviço. Não lhe respondi nem
o olhei.  Avancei decidido para a rua, e ele nada fez…
Fui para casa gozar quatro dias de licença auto-concedida!


No sábado entrei no quartel às 16 horas e dirigi-me à arrecadação do
material de guerra para requisitar os necessários apetrechos militares
para cumprir o serviço que me estava escalado. À hora marcada desci à
parada. Com todos os elementos da segurança em formatura, chegou o
sargento-de-dia transportando debaixo do braço a tabela do reforço.
Formou os soldados, deu as ordens de comando e fez a chamada.
O sargento de serviço tinha um nome curioso (e também surreal) para um
militar de carreira. Chamava-se Ginja. Nunca encontrei apelido igual!
Era um homem já entrado na idade, talvez andasse na casa dos 60 anos.
Magro e pequeno, tinha o cabelo grisalho e exercia a função de chefe
de secretaria. Era ele quem tratava de todas as papeladas eventuais
que um soldado precisasse, e todos nós lhe davamos imenso trabalho com
as necessárias requisições de dispensas para gozarmos os
fins-de-semana.
O sargento Ginja elevou a tabela à altura dos olhos, gritou os números
dos soldados formados, e estes respondiam, enérgicamente, com a
palavra “pronto”.
A certa altura gritou o meu número.
— 191.
— Pronto. — Respondi.
Desde que saí do quartel, na terça-feira, até àquela hora, tinha
faltado a 16 chamadas. Era natural que o sargento já tivesse decorado
o número daquele soldado, provavelmente já considerado desertor.
Arregalou os olhos ao ouvir responder, e repetiu:
— 191?!…
— Pronto. — Respondi mais alto, por me parecer que o sargento não
ouviu à primeira.
Chegou-se a mim e fitou-me:
— Tu és o 191?
— Sou sim, senhor.
— E por onde tens andado?
— Estive em casa.
Ele continuava com aqueles olhos de espantado, que eu até me espantei!
— Em casa?!… E quem te mandou para casa?
— Ninguém. Não preciso que me mandem para casa. Sei onde moro e vou
para casa quando quero.
Era estranho como aquele pequenito de cabelo grisalho, face de pele
macilenta e encarquilhada, conseguia estar tanto tempo sem pestanejar!
Os olhos não se lhe secavam… são mesmo estranhos e surreais, estes
militares!…
— Sabes que estás à pega?
— Imagino que sim.
— E não te importas?
— Eu não, senhor.
Ele continuava admirado e de olho arregalado. Espantoso!…
— Estás a brincar com a tropa?
— Não. A tropa é que está a brincar comigo.
A convicção das minhas respostas deve tê-lo convencido a acabar com
aquele interrogatório perfeitamente desnecessário, e acabou. Completou
a chamada e apresentou aqueles militares ao sargento-da-guarda.
Naquela noite fui visitado no posto de sentinela pelo oficial-de-dia,
um aspirante a oficial miliciano, de pele escandalosamente branca,
alto e magro como um cordel. Ele recebera a participação do sargento
Ginja dando conta da minha ausência prolongada, e foi até mim para me
dar “bons conselhos”, disse ele. E começou surrealisticamente
(inevitável!). Disse-me que que eu estava “no início da minha
carreira” e era uma pena manchá-la com uma punição. Fiquei pasmado!
Aquele tira-linhas fardado estaria convencido de que a vida militar
era a minha carreira?! Estes militares são mesmo estranhos!… Não lhe
disse as razões da minha ausência. Isso era coisa minha. Aliás, não o
contei a ninguém durante muito tempo, vindo a fazê-lo tardiamente, na
roda de alguns amigos e já na vida civil.


Dias depois saía na ordem de serviço a condenação que me foi aplicada:
quatro dias de prisão disciplinar. E era referido o dia em que, pelas
10 horas, ao render da parada, deveria apresentar-me ao oficial-de-dia
para dar entrada na prisão do quartel.
Por aquela altura tinha-se iniciado o alcatroamento da parada até
então em terra batida. O trabalho era executado pelos militares da
unidade, e eu fazia parte da brigada de trabalhadores. As tarefas eram
diversas, e aqueles que hoje abriam a parada a pá e picareta, amanhã
acarretavam terra e pedras, e depois partiam cascalho. Embora pareça
irónico, a prisão libertou-me desses trabalhos forçados!
(Curiosamente, na caderneta militar, nas páginas reservadas ao Registo
Criminal e Disciplinar, consta que infringi o Nº 7 do Artº 4º do RDM,
e que aquela pena me foi imposta “por se permitir ausentar sem licença
do seu aquartelamento desde as 22H00 do dia 16 de Julho, até às 20H00
do dia imediato”… o que não é verdadeiro! Eu ausentei-me quatro dias!
Fico sem saber se não fizeram as chamadas nos outros dias, não dando
pela minha falta [o que me parece improvável], ou [o que julgo mais
viável] o comandante decidiu-se por me encurtar a pena manipulando a
infracção. Esta segunda hipótese tem alguma viabilidade depois de
conhecer o comandante, o Tenente-coronel Correia Dinis, que era
reconhecido por todos pela fraternal relação que mantinha com os seus
homens, e por isso era referido pela soldadesca como “pai-do-soldado”.
Não sei se a minha real ausência poderia ser considerada deserção, e
se o comandante decidiu poupar-me a pena correspondente. Nunca o
saberei).




(FIM DA PARTE 1)
Onofre Varela

A segunda parte deste texto continua nesta página.

 


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