As padeiras vinham de Valongo encarrapitadas em burros e com enormes canastras no dorso do animal
Os velhos alfarrábios ensinam-nos que o planalto onde, nos nossos dias, se localiza a Praça da Batalha era, ainda nos séculos XVI e XVII, constituído por várias propriedades e campos de cultivo. Num desses campos, o de Lamelas, costumava parar a célebre procissão do Corpus Christi em que "os hortelãos e lavradores da freguesia de Santo Ildefonso" participavam, em lugar do honra.
No planalto a Ocidente, ou seja, no lado oposto, os terrenos compreendidos entre a antiga Porta do Olival e as praças hoje denominadas de Carlos Alberto e de Gomes Fernandes eram áridos e secos. Quer dizer: num lado havia bucolismo, hortas verdejantes, jardins floridos; no outro crescia o vime, um ou outro carvalho e oliveiras à sombra das quais trabalhavam os cordoeiros. A cordoaria do bispo começou a funcionar por aquelas bandas já no século XIV.
Curiosamente, é no lado Oriental que ainda hoje encontramos, na toponímia local, resquícios desse longínquo passado: Rua das Oliveiras e Largo do Moinho de Vento, são dois exemplos. Há um documento do século XVII, referente a "umas estalagens nos Ferradores" (actual Praça de Carlos Alberto) que mencionam um "Caminho do Moinho de Vento" que não deve ser outro senão aquele que, em 1647 (ano a que se refere o referido documento) partia "…do terreiro e ermida da Graça para a estrada de Santo Ovidio", hoje Rua dos Mártires da Liberdade. O antiquíssimo caminho do Moinho de Vento correspondia, como o leitor facilmente adivinhou, à Rua de Sá Noronha dos nossos dias.
Dentro do contexto urbanístico deste planalto, o Campo da Via Sacra, como era denominada a actual Praça de Guilherme Gomes Fernandes, era um dos mais concorridos logradouros destes sítios. Tinha aquela designação porque era ali que se situava a última estação de uma Via Sacra. Por isso, também era conhecido por Calvário Velho para se distinguir do novo que ficava na actual Rua do Dr. Barbosa de Castro, à Cordoaria. Devido à proximidade com o extinto convento das Carmelitas de S. José e Santa Teresa, este espaço também teve a designação de Largo e Praça de Santa Teresa. E foi exactamente aqui que se realizou a célebre feira do pão a que alude um leitor em amável carta que me dirigiu, perguntando quando começou esse mercado e em que ano terminou.
A tradição, no Porto, da venda de pão em feiras é muito antiga e não se sabe bem quando começou. Mas sabe-se, por exemplo, que já a 14 de Março de 1584 era publicado um acórdão municipal, se assim se lhe pode chamar, em que se determinava que "as medideiras da feira do Pão, messão em gamellas fora das casas no meio da praça, quando não chover, sob pena de multa…" Esta lei, se assim pode dizer-se, que obrigava as "medideiras" a trabalhar na praça e que tinha por finalidade impedir roubos ou outras falcatruas, ainda estava em uso quando, nos meados do século XIX, ainda se fazia a feira do pão no antigo Largo de Santa Teresa e a da farinha, na Praça dos Voluntários da Rainha, actual Praça de Gomes Teixeira. No ano seguinte (1585), foi publicada nova legislação, desta vez contra "as pessoas que misturarem o pão trigo de fora com o da terra e que quem vender hum não possa vender o outro…"
Nos meados do século XIX, a feira do pão funcionava no espaço da actual Praça de Guilherme Gomes Fernandes que, segundo relatos da época, mantinha a configuração geométrica de um triângulo mas que se assemelhava mais a um adro de igreja do que a um logradouro público.
As barracas onde se vendia o pão estavam dispostas ao centro do amplo terreiro e, embora o mercado fosse mais concorrido às terças-feiras e sábados, por causa de outras feiras que se realizavam na cidade, havia quem ali viesse todos os dias vender o célebre pão da terra confeccionado com farinha que era moída nos moinhos a água da região de Valongo. Esta era, efectivamente, a terra do pão. Era de lá que vinham as padeiras, encarrapitadas em burros com duas enormes canastras sobre o dorso do animal cheias do saboroso pão da terra. O produto mais procurado eram os célebres "pães de Valongo" que pesavam cerca de meio quilo e eram vendidos, nos finais do século XIX, a 75 reis cada um. Mas a variedade era imensa e para todos os gostos. Vendiam-se também, e em abundância, o nosso muito conhecido "pão molete", regueifas, tosta (doce e azeda) boroa, pão podre, pão coado, biscoitos de várias qualidades e feitios como os de argola, que eram muito procurados por moços e moças dos arrabaldes.
O rápido desenvolvimento urbanístico da cidade e, em especial, do chamado Bairro das Carmelitas ditou o fim da pitoresca feira do pão. Nos começos do século XX, os abarracamentos começaram a ser demolidos e as ladinas padeiras de Valongo instalaram-se na ala sul do Mercado de Anjo, entretanto também já desaparecido. Coisas da vida de uma cidade...
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