Com a devida autorização, transcrevo um artigo da autoria de António Castilho Dias.
«Ano de 1969.
A crise académica desencadeou-se em Coimbra aquando da visita do então Presidente da República, Américo Thomaz.
Na sessão de inauguração de um novo edifício, salvo erro ligado às Matemáticas (mas haverá muita gente que conhece melhor esta peripécia do que eu e pode corrigir-me), o presidente da Associação Académica e actual deputado Alberto Martins pretendeu usar da palavra como representante dos estudantes. Tal foi-lhe negado.
Quando os participantes na cerimónia saíram para o exterior, um muito numeroso grupo de estudantes insultou o Thomaz (chamando-lhe, em bem sonoro e afinado coro, de palhaço) e outras altas individualidades como o então ministro da Educação, o bem conhecido Hermano José Saraiva.
Daí para a frente, foi um processo tumultuoso que teve o seu zénite na greve aos exames da Academia coimbrã.
Mas o movimento alastrou a Lisboa e ao Porto que eram, ao tempo, as únicas cidades com ensino superior universitário (se já havia em Évora, peço desculpa, mas teria ainda muito pouca gente).
No Porto, eu frequentava o 2º ano, que era também o segundo dos três chamados preparatórios e que eram leccionados na Faculdade de Ciências. Só depois faria os dois últimos anos, na Faculdade de Engenharia, à rua dos Bragas.
E, embora longe do vigor contestatário da cidade do Mondego, foram-se fazendo uns comícios (só depois da revolução de 25 de Abril é que percebi que o Partido Comunista já estava por trás das movimentações).
Estes realizavam-se sobretudo no átrio interior da entrada da Faculdade de Ciências.
A frontaria do vetusto e bonito edifício estava voltada para o largo dos Leões (oficialmente é a praça de Gomes Teixeira), com o seu grupo escultórico no meio do pequeno lago e os tapetes de relva bem verdinha.
Atravessando a entrada principal com a sua larga e pesada porta de ferro e vidro, podíamos ver o átrio e, ao fundo, duas escadarias muito largas, em pedra, que conduziam ao andar superior. Entre ambas existia um estreito espaço ocupado por uma secretária de madeira e uma cadeira para se sentar um funcionário.
Pouco visíveis da entrada e muito perto das escadas, nasciam lateralmente dois corredores mal iluminados que davam para a zona da Química, um deles, e para a da Mineralogia e Geologia, o outro.
Pois era nessas escadarias que, quasi todos os dias, havia uns quantos colegas mais activos politicamente que faziam as suas intervenções oratórias de mal dizer do regime, do governo, da guerra colonial, da falta de liberdade e democracia e de tantas coisas a que o salazarismo-marcelismo fornecia múltiplos argumentos.
E o maralhal quando lá passava ficava a ouvir durante algum tempo, aplaudindo as passagens mais empolgantes. E depois ia à vidinha.
Mas não eram só os antifascistas quem tinha voz.
O Zé Gordo, um tipo anafado de óculos verdes, graduado da Mocidade Portuguesa e defensor assumido e convicto do regime, também falava para uma plateia onde tinha alguns (poucos) apaniguados e muitos mais mirones. Quando era aplaudido pelos colegas situacionistas, logo os apupos se ouviam bem mais alto e, alguns democratas ainda pouco esclarecidos, mandavam-no calar ou ir para a rua.
Confesso que admirava a coragem do sujeito.
E chegamos ao dia D.
Melhor, dia P, pois estava convocado um plenário para discutir qualquer coisa que já não sei o que era.
O átrio estava prenhe de malta. Rapazes e raparigas, naturalmente. Nas escadas de pedra postavam-se os activistas da luta anti-fascista, agora já reconhecidos por todos.
Eu estava mais ou menos a meio com o meu colega e amigo Fernando Aguiar.
A sessão começou às três da tarde.
Discursos, aplausos, apupos quando se falava no Marcelo, no Thomaz ou no regime e, a certa altura, ouviu-se uma voz a dizer.
- A polícia de choque chegou!
- Ninguém arreda pé! – disse um dos líderes.
Mas o plenário continuou como se o alerta não tivesse sido ouvido.
Sinceramente, não me pareceu que houvesse alguma intervenção policial, pois tudo continuava a decorrer com bastante calma mas, pelo sim pelo não, fui magicando na táctica a seguir.
Sair dali era uma vergonha. E eu também era do reviralho, que diabo. E não era nenhum cobardola. Havia que enfrentar a situação de frente mas com inteligência.
E que decidi fazer?
Partindo do princípio que os agentes não eram muito dotados intelectualmente e que, pensava eu, batiam no que mexia, o melhor seria estar quieto. Melhor ainda: poderia dar-me uns ares de informador da polícia política (PIDE), fazendo uma cara de quem está a apreciar o comportamento de uns e outros. E olhar sempre os monos nos olhos.
Passados uns bons dez minutos, e vindos dos dois corredores que atrás referi, irromperam a correr pelo átrio uma boa quantidade de agentes com cassetetes no ar e capacetes na cabeça. Ainda não se usavam os escudos de plástico transparente.
O pânico foi geral. Muitas meninas, como é habitual nestas coisas, começaram com gritos mais ou menos histéricos.
Como não entrara polícia pela porta principal, foi por ela que os estudantes começaram a sair.
Mas eu mantive a minha táctica. Curiosamente, o Fernando procedeu exatamente da mesma maneira, sem previamente termos feito qualquer combinação. Só quando a zona estava quasi vazia é que ele me fez um sinal para sairmos,
Ninguém nos tocou.
Nos relvados dos Leões estavam imensos contestatários, sentados ou em pé, a insultar os polícias. Dirigimo-nos calma e firmemente para a porta onde já estavam a juntar-se os invasores.
Mal pus um pé na rua…
Pumba!
Apanhei com um pedaço de relva, com as raízes cheias de terra, em cheio na cara.
Era dirigido aos monos mas eu é que levei com o torrão nas trombas.
Porra!
Então a polícia não me agrediu e foram os antifascistas a fazê-lo?
Fiquei pior que estragado.
Mas compreendi e perdoei de imediato. Solidariedade académica e antifascista acima de tudo.
Entretanto, eu e o Fernando dirigimo-nos para o passeio onde ficam as igrejas do Carmo e das Carmelitas, com o intuito de chegarmos ao bar de Letras onde a malta mais amiga se juntava diariamente.
Eis que olho para trás e vejo um chui a correr atrás de nós com gestos ameaçadores.
Toca a aplicar a mesma dose. Paramos, olhamos o homem bem de frente com cara de poucos amigos, e não é que ele dá meia volta e manda uma cassetetada numa velhinha que ia a correr?
A tese foi completamente confirmada pela experiência.
Chegados ao bar, contamos as ocorrências com um acento triunfal.
E havia razões para isso.
E assim começou e acabou a minha actividade como antifascista.
Ou será que qualquer dia me lembro de outra ação heroica que tenha praticado e, quem sabe, me torne credor de uma daquelas medalhas que o Presidente da República distribui no 10 de Junho? »
Publicado no seu blog Eu sou louco.
1 comentário:
Actualmente, a praça dos Leões já não tem a relvinha que permitiu que eu fosse bombaerdeado por engano
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