« FERNANDO AROSO, o Grande Mestre da Fotografia, vai ser homenageado, numa organização conjunta do Círculo de Cultura Teatral / Teatro Experimental do Porto e do Ateneu Comercial do Porto, no nosso Salão Nobre.
Recentemente nomeado Sócio Honorário do CCT/TEP, receberá, nessa Sessão, o respectivo Diploma. Em seguida será inaugurada uma Exposição representativa da sua colaboração com o Teatro Experimental do Porto, entre 1956 e 1962. Nos anos em que António Pedro, com o TEP, fazia a grande revolução estética no Teatro Português, a única do século XX no nosso País, com a introdução da encenação moderna e o sentido de unidade das diferentes vertentes e artes do espectáculo, sob a direcção do encenador, Fernando Aroso acompanhava essa revolução com uma outra: a da fotografia de cena, projectando um novo olhar sobre a fixação do acto efémero que é o Teatro, antevendo a História. Pelo rigor milimétrico do seu acto de fotografar, em que toda a cena era preparada para a fixação, pela imagem, do momento certo do que de mais importante ocorria no espectáculo, hoje podemos entender melhor o que estava a ocorrer nesse processo de renovação do Teatro em Portugal, nesses idos de cinquenta do século passado.
Fernando Aroso está com 93 anos. A exposição de fotografias de Fernando Aroso ficará patente até dia 8 de Abril. A entrada é livre. »
Aproveito a realização deste evento para divulgar um texto sobre o homenageado que me foi cedido pelo meu amigo Augusto Baptista, mestre em tangram, repórter, fotógrafo,etc portuense de razão e coração.
O retrato do retratista
Entre as muitas possibilidades que a fotografia suscita, o retrato sempre foi a sua primeira opção. Profissional com 81 anos de «puro amadorismo», Fernando Aroso é — na palavra de António Pedro — «um admirável artista que é preciso conhecer». 1
Texto de Augusto Baptista
Caminha inquieto, enquanto por gestos indica o trajecto para a entrada do estúdio: «Tenho de o fotografar à minha maneira», magica. O outro senta-se, olhos sobressaltados, rosto talhado a golpes de enxó, sem mais acabamento.
Um rosto assim nunca vira em teatro, cabeça a ressurtir sobre um pescoço seco. Tão avesso em mostrar-se, que desígnio o terá trazido? Que imagem buscará? Como não ficar aflito sob o fulgor destes olhos alerta, fronte a trepar cabeça acima, braços cruzados sobre um peito camponês?
Uma palavra mal medida poderá ser a centelha a incendiar o lendário mau génio do outro, deitar tudo a perder. Refugia-se em gestos comedidos, silêncios demorados. Deambula entre projectores, no acerto da luz, do ângulo, do enquadramento no visor da velha Rollei. E magica: «Tenho de o fotografar à minha maneira».
Mão no disparador, num quase sussurro, atreve pedir-lhe que olhe. Que olhe para além da câmara, como quem procura... como quem procura um poema. O outro balbucia Ó falcão, falcão, debicando as estrelas e, sorridente, fala dos mistérios que podem soltar o verso: um pedido inesperado, a palavra abraço de repente a emergir no dicionário, a lembrar que mais vale um abraço em vida que o nome numa rua depois de morto.
Fernando Aroso, o Arosinho, assim lhe chamava António Pedro, elege o frente-a-frente com Miguel Torga como momento marcante na sua vida de fotógrafo. Evoca com emoção a tarde de 1959, quando, ao seu estúdio na Rua Formosa, chegaram três inesperados visitantes: Alberto de Serpa, José Régio, Miguel Torga.
Por esta ordem os fotografou. Três retratos que integram a galeria dos famosos que passaram pelo seu estúdio, se entregaram ao seu olhar, em demoradas e exigentes sessões de trabalho.
Na transição dos anos 50-60, está no auge. Intelectuais, artistas, os rostos mais em foco da sociedade portuense aspiram a um retrato firmado por si. Para este apogeu muito contribuiu a exposição de fotografia de cena e retratos de gente do Teatro Experimental do Porto, TEP, em Fevereiro de 1958.
A apresentação de António Pedro, aos microfones da Emissora Nacional, consagra-o artista-fotógrafo, desiderato ao alcance das raras criaturas capazes de escolher «não apenas o motivo que, quasi diria ser secundário — não é a qualidade das pêras que faz a beleza de uma natureza-morta de Cézanne — mas escolher a coincidência entre a luz, o objecto e o seu desenho no espaço, o jogo de claros e escuros como esse espaço se estabelece, as relações de tonalidade que nesse espaço criam os volumes e as formas».
De «admirável artista que é preciso conhecer», Aroso torna-se conhecido. A reforçar estatuto, publica dois livros de poesia, em 59 e 61. Mas são as imagens, o seu modo de ver, a atmosfera psicanalítica das suas sessões fotográficas, que lhe conferem aura: «Às vezes chegava quase a hipnotizar a pessoa para conseguir aquele momento em que ela estava abstracta a pensar noutra coisa».
Oriundo da classe média, nasceu em Ramalde, Porto, em 1921. Nos estudos não foi longe e, como castigo, o pai passou a levá-lo para o escritório da empresa de que era sócio-gerente, na Rua Passos Manuel. «Mas eu não estava lá nunca, ia para o Mesquita», reputada casa de fotografia ali bem perto.
Encafuava-se no laboratório, fascinado pela câmara escura, a revelação: «Ali tirei um curso de autodidacta». E, sempre de máquina, deambulava pela cidade, fotografava. Os resultados via-os, com sobranceria e enfado, o velho Pedro Costa, traquejado profissional, sócio do Mesquita: «Umamerdaumamerdaumamerda». Mas um dia.
Um dia, jovem Aroso fez a cabeça de uma velha, na Ribeira. E a imagem foi à inspecção do Costa, que olhou, remirou, chamou o empregado: «Faz aí uma 18x24».
Munido da cópia em papel, não se fez rogado: «Fui logo à Foto Stand, na Rua Sá da Bandeira, onde se juntava a gente toda do Grémio Português de Fotografia, que funcionava nos Fenianos: o Manoel de Oliveira, o António Mendes, o Silva, o Manuel Pinheiro da Rocha, Platão Mendes, dr. António Pinto de Miranda, dr. Oliveira Alves...». Abordou este último, mostrou-lhe a obra, propondo-a ao Salão Internacional de Fotografia. O outro olhou, remirou, «achou piada ao atrevimento de um miúdo de 20 anos», acedeu: «Faça aí uma 30x40».
A cabeça da velha foi o abre-te Sésamo de Fernando Aroso no mundo da imagem. Frequentou tertúlias, integrou o núcleo fundador do Condor Cineclube e da Associação Fotográfica do Porto, experimentou caminhos, «sempre à boa maneira da exigência do amador».
Entretanto, nos anos 50 surgiu o TEP. O actor Vasco de Lima Couto, seu primo, apresentou-o a António Pedro, que o convidou a fotografar Antígona: «Nunca tinha feito fotografia de cena, nem estava dentro do campo comercial. Mandei umas provas e daí nasceu uma empatia tão grande com António Pedro que eu fiz todas as peças dele».
Visando «uma aproximação ao retrato», abre estúdio na Rua Firmeza, em 1959. São anos de ouro, curtos e rápidos. Com a saída de António Pedro do TEP, em 1961, interrompe a colaboração com a companhia. Em 1965, transfere o estúdio para a Rua de Entreparedes.
Com o declínio do preto e branco, orienta a actividade profissional para o meio discográfico. Politicamente desligado, «nunca me filiei em nada», fotografa José Afonso, Adriano, Fanhais, «essa gente toda dos andarilhos, os cantores de protesto». E fadistas, ranchos, grupos musicais, cantores populares: «Fiz até hoje à volta de duas mil capas de discos».
Edita postais, calendários, experimenta a fotografia industrial, publicitária. E perde-se no Porto, a captar ruas, casas, clarabóias, batentes, estátuas, cemitérios. Por puro amadorismo. Expõe, edita álbuns (Dádivas do Tempo, Pontas de Rolo), fotografa a cidade com olhos de retratista: «A câmara é um ponto de intercepção entre o assunto e o fotógrafo. E é nesse ponto que se capta o momento, o tal momento mágico, a pessoa». O mundo.
1 Texto publicado na revista Notícias Magazine n.º 543, 20 de Outubro de 2002.
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