16.11.13

A Casa da Rata do CICA - II

2013_255


(PARTE 2)


No CICA 1 havia Juramentos de Bandeira de dois em dois meses, que era
o tempo de cada escola de recrutas. A sessão de Juramento era uma
festa e o quartel franqueava as portas à população civil. A cerimónia
decorria na parada durante a manhã, seguia-se-lhe uma prova
desportiva, e depois havia rancho melhorado. À tarde apresentava-se um
espectáculo de variedades realizado e constituído pela prata da casa,
numa sala com palco.
Na população do quartel havia sempre quem cantasse ou tocasse, e os
espectáculos eram aguardados com grande ansiedade. Para a sua
preparação havia um ensaio por semana, num determinado dia, a seguir
ao almoço. Os militares que consideravam ter qualidades para tal,
inscreviam-se e apresentavam provas nos ensaios que eram abertos a
todos, e tinham a supervisão dos aspirantes António Fernandes e
Amílcar Bessa.
Portanto, todas as semanas havia um espectáculo de variedades com a
sala a abarrotar de espectadores.
No dia em que tive de me apresentar na prisão, havia ensaio e eu tinha
decidido participar nele como humorista, o que era coisa nunca vista
naquele palco. Porém, a prisão impedia-me de concretizar. Mas a sorte
parecia estar do meu lado, embora o azar também não me largasse a
perna! O oficial que ia entrar de serviço no render da parada era o
aspirante António Fernandes, co-organizador dos espectáculos!… Era uma
boa oportunidade para me propôr participar no ensaio do dia.
Depois da cerimónia do render da parada formou-se uma fila com todos
os militares que iam entrar de serviço, para se apresentarem ao
oficial-de-dia. No final da fila estava eu, carregando uma manta,
lençóis e fronha, já que na “casa-da-rata” havia cama mas não havia
roupa.
Chegada a minha vez, fiz a continência e apresentei-me:
— Apresenta-se o soldado condutor auto-rodas número 191/65, a fim de
dar entrada na  prisão do quartel.
— Estás apresentado. Apresenta-te ao sargento da guarda. Podes retirar-te.
— Meu aspirante, preciso de lhe falar sobre o ensaio de hoje… — Ele
olhou-me interrogativamente, e eu continuei. — Tinha decidido
participar nele como humorista. Mas porque vou preso, peço-lhe que na
hora do espectáculo permita que eu saia da prisão para me apresentar
em palco.
— Estás maluco?!…
E fez-me sinal com a cabeça para me retirar.
Retirei-me sem grandes convicções.
Após o almoço, o ferrolho fez o cagaçal característico do rodar da
enorme e pesada chave, e a porta chiou nos gonzos a pedirem óleo.
O sargento-da-guarda chamou:
— 191?
Olhei-o, com ar de espanto.
— Acompanha os praças da guarda.
Meti-me entre os dois soldados que me esperavam à porta, de mauser ao
ombro, e que me conduziram à sala de espectáculos pela porta dos
bastidores. Entrei. No palco um soldado começava a ser aplaudido por
ter cantado e tocado viola. O moço agradeceu os aplausos, retirou-se,
e o aspirante António Fernandes apontou-me, com o queixo, a escada de
acesso ao tablado.
— Sobe. É a tua vez.
Subi e percorri o espaço até à boca de cena. Parei em frente do
microfone. A sala estava cheia. Não levava instrumento nem ía
acompanhado por qualquer músico. A assistência olhava-me em silêncio,
talvez intrigada, porque para cantar faltava a música.
Contei uma anedota, e o público explodiu em gargalhada! Contei mais
uma, e outra, e talvez meia dúzia. Os soldados aplaudiam euforicamente
e eu sem perceber se as anedotas tinham mesmo aquela piada toda!
Quando saí entre os dois praças da guarda para regressar à prisão, as
palmas ainda não tinham parado de ecoar e ouvia-as na parada a caminho
da “casa-da-rata”!
Fiquei contente por ter sido recebido com tanto entusiasmo. Anedotas
não era coisa que alguma vez se tivesse ouvido naquele palco. Talvez a
novidade e a irreverência do humor motivassem aquela reacção tão
calorosa e animadora para continuar na senda dos espectáculos
caseiros.
Pelo meio da tarde abriu-se a porta da cela. O Augusto, um camarada de
Braga, foi-me levar um pão com chouriço, uma cerveja e um maço de
tabaco, por ordem do comandante! Era o prémio que o Tenente-coronel
Correia Dinis dava aos intervenientes naqueles espectáculos semanais.
O Augusto informou o cantineiro da prisão do contador de anedotas, e
reivindicou a minha parte para ma entregar.


A “casa-da-rata” era um pequeno quarto com estreita janela gradeada, e
recheado com  um beliche de três camas, uma mesa de madeira com tampo
demasiado pequeno, e uma cadeira. De uma parede saía uma torneira
sobre um lavatório minúsculo, liliputiano, proporcional à mesa. Da
mobília da cela também fazia parte um balde de zinco, meio de água.
Era o balde-sanitário. Ali os prisioneiros urinavam e defecavam. Todos
os dias, pelo fim da tarde, o balde era despejado e lavado. A tarefa
pertencia aos reclusos. A primeira vez que o fiz não pude deixar de
rir despregadamente pela situação. Dois praças da guarda, de
espingarda Mauser ao ombro, acompanhavam-me à retrete para eu poder
despejar o balde. Não resisti ao caricato da situação ao ver aqueles
soldados tão sérios e de ar tão bélico, ladeando-me, e eu com um balde
de merda na mão. Não me contive e disse-lhes:
— Não imaginava a importância da minha merda! Dois garbosos soldados
prestam-lhe honras militares!…
Rimos os três a caminho da retrete.


No meu primeiro dia de reclusão tive um companheiro: o Casqueiro.
Cumpria o seu último dia de prisão e seria libertado ao render da
parada no dia seguinte. A história que o levou àquela cela contou-ma
ele.
O quartel ocupava o gaveto formado pelas ruas de D. Manuel II e
Viterbo Ferreira, e o seu espaço confinava com as traseiras e os
quintais dos prédios da rua da Restauração, entre os quais se conta a
Porto Editora. A rua Viterbo Ferreira separava o quartel dos terrenos
do célebre Palácio de Cristal, substituído pelo Pavilhão dos Desportos
agora chamado Rosa Mota. Estava ele de serviço de sentinela na guarita
denominada “posto da Lola” — por estar próxima de uma casa de
prostituição conhecida por aquele nome de mulher — sobre o muro da rua
Viterbo Ferreira, em frente aos jardins do Palácio, e encontrou por
ali um casqueiro seco, duro como pedra, que alguém levara
provavelmente para comer durante a guarda, mas que o deixou por lá
esquecido e ninguém mais lhe mexeu. Ele decidiu arremessar aquele pão
para os jardins do Palácio, e fê-lo com tanto azar ou pontaria, que
acertou na cabeça de um visitante. O casqueiro estava duro como pedra,
e a vítima teve de receber tratamento na urgência do Hospital de Santo
António, ali a dois passos. Por isso estava preso, e também por isso
passou a ser conhecido pela alcunha: Casqueiro!


O sargento-da-guarda era a autoridade militar que mais próxima estava
dos reclusos porque a prisão se situava precisamente na
casa-da-guarda. Todos os dias havia um sargento diferente, o que se
notava no tratamento dado aos presos. Aqueles que tinham um espírito
mais severo, mais militarista, fechavam a porta da cela, abrindo-a
apenas quatro vezes por dia para nos levarem as três refeições e para
despejo do balde-sanitário. Os outros, os mais liberais, mantinham a
porta da cela aberta e os prisioneiros conviviam com os
praças-da-guarda. Num desses dias, apanhava eu um pouco de sol
encostado ao umbral da porta, a ver os meus camaradas partirem
cascalho e a fenderem a terra dura da parada com picareta. Olhei-os,
sorridente, e chamei a atenção dos mais próximos para lhes dizer:
— E eu é que estou a cumprir pena, hein?!…


Para passar o tempo, lia. Mas também desenhava. Tinha levado um bloco
de papel de desenho e fiz um cartaz, tipo Far-West, onde desenhei a
caricatura do sargento Ginja, com as palavras: “Procura-se. Ginja, o
Terrível. Dão-se três meses de pré a quem o entregar vivo ou morto”.
Naquele dia o sargento-da-guarda era do lote dos porreiros. Daqueles
que mantinham a porta da cela aberta e permitiam o convívio. Viu o meu
desenho e soltou sonoras gargalhadas. O sargento Ginja não era
apreciado nem pelos seus camaradas de classe! Perguntou-me se podia
mostrar aquilo a outros sargentos. Que sim, disse eu. Ele foi para a
porta da casa-da-guarda e mostrou-o aos sargentos e oficiais que
passavam. Alguém lhe sugeriu a afixação do desenho no painel das
ordens de serviço e informações gerais, que ficava numa vitrina na
parede do corredor da entrada. Ele achou boa a ideia, e pediu-me
autorização para o fazer.
— O meu sargento esteja à vontade, — respondi-lhe.
Horas depois o desenho tinha desaparecido. O sargento, de porreiro
passou a bera. Quiz saber quem o retirou. Depois informou-me:
— Ó pá, temos um problema. Quem levou o desenho foi o sargento Ginja.
— Óptimo, não o sabia coleccionador!… — Foi a minha reacção imediata.


(FIM DA PARTE 2)

Onofre Varela


Actualização em julho de 2017:

Aqueles que se interessam pelo desfecho deste texto podem continuar a ler a última parte




O livro "ÚCUA, 1966" aguarda um editor. Nesta obra o Onofre conta a sua experiência militar e participação na campanha de Angola. 

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