18.11.13

A Casa da Rata do CICA - III

2013_256


Terceira e última parte do texto de Onofre Varela.

<(PARTE 3)

Às 10 horas da manhã do dia que completava o meu quarto dia de
reclusão, após ser rendida a parada, o sargento-de-dia acabado de
assumir a função, cumpriu a sua primeira tarefa: abriu a porta da cela
e anunciou a minha libertação. Eu já tinha preparado os meus pertences
e dirigi-me à caserna onde os depositei na arca que cada soldado tinha
aos pés da cama. Depois fiz o que a lei militar me obrigava:
apresentei-me ao sargento da companhia: o Ginja!
Subi as escadas e parei à porta da secretaria. O sargento estava em
frente, sentado na sua secretária, provavelmente ruminando a minha
apresentação.
— O meu sargento dá-me licença?
Ele levantou os olhos para a porta.
— Entra.
Perfilei-me à sua frente, fiz a continência e debitei a ladaínha a que
o RDM me obrigava.
— Apresenta-se o soldado condutor auto-rodas 191/65,  acabado de ser
solto da prisão do quartel.
Ele já se tinha levantado quando cheguei à sua secretária, e ouviu-me
também em posição de sentido.
— Estás apresentado.
— Dá-me licença que me retire?
— Não. Espera.
Abriu a gaveta da secretária e pegou no meu desenho, dobrado em quatro.
Era mau coleccionador. Os desenhos não se dobram!
 — Quem fez isto? — E estendeu o desenho em frente do meu nariz.
— Fui eu, meu sargento.
— Tu és homem?
— Sou sim, senhor.
Ele, encolerizado, elevou a voz.
— Não és nada. És um garoto.  — Gritou — Eu podia ser teu pai…
E num acto de perfeita fúria ou loucura, rasgou o desenho em mil
pedaços. De imediato contornou a secretária e desferiu-me dois ou três
murros na cara. Senti o sabor a sangue. O interior da boca tinha
rebentado por esmagamento contra os dentes. Retomei a posição de
sentido e repeti o pedido de permissão para retirar:
— Dá-me licença que me retire?
— Desaparece!... Não quero voltar a ver-te aqui. — Conseguiu vociferar
o irado sargento, perfeitamente fora de si.
Fui ao balneário da caserna lavar a boca. A minha vontade era atirar
uma máquina de escrever à cara do Ginja… mas o violento era ele, não
era eu. Sentia, contudo, que aquele episódio de prepotência não devia
morrer ali. Toda a comunidade do quartel deveria saber do sucedido. A
agressão foi testemunhada por alguns militares, aqueles que cumpriam
tarefas na secretaria, como os escriturários, faxinas e impedidos.
Eles encarregar-se-iam de contar o que testemunharam. Mas não chegava.
Havia que fazer algo para ampliar a divulgação daquela agressão vil.
Então, numa folha de papel de máquina de escrever, dobrada ao meio,
desenhei um boneco de traço simples representando um soldado em frente
de um sargento. Na outra parte do papel, à transparência do vidro de
uma janela, copiei o mesmo desenho com algumas diferenças da posição
do braço do sargento e da cabeça do soldado. Levantando e descendo com
ritmo o primeiro desenho, obtinha-se uma ilusão animada representando
o Ginja a esbofetear-me. Fiz meia dúzia de cópias e escolhi camaradas
a quem entreguei um dos desenhos e contei a história.
— Foi assim que o sargento Ginja me partiu as ventas. Mostra isto ao
maior número de pessoas.
Um dos originais foi entregue ao sargento que afixou a caricatura. Ele
estava mal disposto com o sucedido. Sabia da atitude do Ginja e não a
aprovou. Riu com o desenho e foi logo mostrá-lo no bar e sala de
convívio da classe.
Toda a população do quartel viu o “boneco”, incluindo o comandante.
Senti que aquele meio de divulgar a agressão física com humor, foi uma
afronta terrível para o visado, que passou a ser alvo da chacota dos
seus colegas de classe. E ele não tinha processo de retaliar aquela
reacção humorística, a não ser com perseguições e represálias, o que
na tropa é sempre facílimo de conseguir de cima para baixo, mas tais
atitudes não seriam aprovadas pelos seus camaradas de classe, nem eu
as deixaria silenciadas, o que deve ter desmotivado o sargento Ginja
de as tomar.

Cada dia de prisão valia cinco dias de detenção. Quer isto dizer que,
para além dos quatro dias de cadeia, tinha de cumprir mais vinte dias
de permanência no quartel, do qual não estava autorizado a
ausentar-me. Logo, a pena a cumprir era, na realidade, de 24 dias!
A minha farda já apresentava nódoas e sujidades várias tornando-a
imprópria para enfiar no corpo. Outra farda mais limpa e dada a ferro,
tinha eu… em casa. O pior é que não podia ir lá buscá-la!
Andava com este problema de higiene a matraquear-me a cabeça, quando
ouço, na aparelhagem sonora da parada, a repetição do meu número
chamando a atenção do visado para o recado que ia ser transmitido.
Tinha de me apresentar com urgência no gabinete do comandante.
— Mau!... que fiz eu agora?!... — Interroguei-me já a caminho do corpo
principal do quartel, com porta larga e escadaria de pedra.
Subi ao primeiro andar e entrei no gabinete do Tenente-coronel Correia
Dinis, que me recebeu cordialmente e foi directo ao assunto. Era
preciso pintar um cenário. Ele queria que os espectáculos deixassem de
ter aquela parede branca com duas janelas no fundo do palco. Precisava
ali de um painel decorado, e já tinha a ideia. Queria a representação
de um soldado a conduzir uma dona Elvira, e a sigla CICA 1.
Aquele pedido só tinha uma explicação. Ele sabia que eu era
desenhador, e tal conhecimento só lhe podia ter chegado através da
caricatura do Ginja e do desenho animado!
— Aproveita este fim-de-semana para fazeres um projecto, lá em casa, e
segunda-feira mostra-mo. — Disse, como remate da conversa.
Aí estava o problema. Eu não tinha direito a gozar fins-de-semana! Sem
pensar em nada mais, respondi de imediato:
— Então peço ao meu comandante o favor de me assinar uma dispensa…
Ele olhou-me através dos óculos com lentes levemente esverdeadas e não
compreendeu a razão do meu pedido.
— Mete a dispensa à secretaria!…
— Não posso. Tenho as dispensas cortadas.
Foi então que se lembrou do meu historial.
— Ah, pois!… Tu és o tal!…
Aproximou-se da janela. Estava-se a proceder ao render da parada e o
oficial que ia tomar conta do serviço era o tenente Costa Lobo, que
exercia as funções de Comandante de Companhia. Aquele oficial era,
portanto, o meu comandante, já que eu pertencia à sua Companhia. O
Tenente-coronel Correia Dinis era comandante da Unidade, que
compreendia duas companhias.
Sem deixar de olhar pela janela, o comandante ordenou-me:
— Vai dizer ao tenente Costa Lobo que venha à minha presença.
Desci à parada e esperei o final da cerimónia de apresentação dos
militares que entravam de serviço. Quando o tenente se movimentou no
sentido de se retirar dali, abordei-o e transmiti-lhe a vontade do
comandante em querer vê-lo.
Dirigiu-se ao edifício do comando e eu segui-o. Ao reparar que o
acompanhava, olhou-me e indagou:
— Que me quer ele?
— Quer que o meu tenente me conceda uma dispensa de fim-de-semana. —
Informei, já que era esse o seu desejo, antevendo a sua possível
reacção.
O tenente Costa Lobo também me conhecia. Aquele espectáculo de
anedotas do recluso (já tinha participado em mais alguns ensaios com
novo repertório e com a repetição do sucesso da estreia), mais a
história dos desenhos e da agressão do sargento Ginja, tinham-me dado
uma fama que eu não procurei nem esperava!
— O quê? Tu foste pedir ao comandante uma dispensa?! E quem te
autorizou a falar ao comandante? Um soldado não pode fazer isso.
Primeiro tinhas que dirigir o pedido ao sargento Ginja. Ele
transmitia-mo, e eu é que falo ao comandante. Parece que queres
apanhar mais uma porrada!?…
Não lhe respondi. Sabia o que ia acontecer a seguir e ansiava por
viver esse bocado. Chegados ao gabinete do comandante, o tenente
perfilou-se e fez continência com um bater de calcanhares que ecoou
pelo corredor de pedra. Não chegou a entrar. Ainda no umbral da porta,
o comandante disse-lhe:
— Ó Costa Lobo, assine uma dispensa de fim-de-semana a esse moço, que
ele é bom rapaz…  merece.
— Sim, senhor, meu comandante.
Direito como um eucalípto, o tenente voltou a fazer a continência e o
eco do bater dos tacões encheu de novo o corredor. Depois para mim:
— Vai ao sargento Ginja que te assine a dispensa.
Saí dali apressado. O riso contido rebentava-me os pulmões. Dei uma
gargalhada ao chegar à parada e corri a preencher a dispensa de
fim-de-semana.
Entrei na secretaria e estendi a dispensa ao sargento, pedindo que ma
assinasse, sublinhando que era por ordem do comandante. Ele fitou-me
com os seus habituais olhos de espanto, mas, desta vez, também com um
sorriso arreganhado.
— O quê?!... Tu foste falar ao comandante? Quem to autorizou?! Estás
arrumado, mancebo. Parece que tão cedo não te vais libertar da tropa,
vou-te meter outra vez na cadeia…
Nesse momento o tenente Costa Lobo entra na secretaria, e o sargento,
de olhar iluminado, dirige-se-lhe, euforicamente.
— Ó meu tenente, este mancebo diz que…
O oficial não o deixou terminar a frase.
— Sim. Pode assinar-lhe a dispensa. Está autorizado.
O sorriso sumiu-se-lhe do rosto. Arrancou-me a dispensa da mão,
apôs-lhe o carimbo da assinatura e entregou-ma sem me olhar.

Agora havia outro problema. Tinha que sair a porta de armas envergando
uma farda encorrilhada e suja que era um perfeito nojo, e àquele
oficial-de-dia eu não podia apresentar-me assim. Não ia ter sorte
nenhuma com ele. Que fazer? Pedir uma farda emprestada? Era uma
solução. Fui consultar a tabela de serviço e vi que no dia seguinte,
sábado, ía entrar de oficial-de-dia o aspirante António Fernandes! A
sorte estava outra vez do meu lado, mas não podia abusar dela.
No sábado, após o render da parada, os soldados que não tinham partido
para gozo de fim-de-semana na véspera, por estarem de serviço,
juntaram-se na parada, com botas engraxadas, barba bem escanhoada e
farda bem apresentada com os metais polidos. Eu fiquei de longe a
olhá-los. O aspirante António Fernandes apareceu, olhou os soldados um
a um, mandava saír uns e voltar para trás aqueles que não se
apresentavam em condições para saír. Esperei que o último soldado se
retirasse e apresentei-me ao aspirante.
Em sentido à sua frente mostrei-lhe a dispensa e ele olhou-me de alto
a baixo. Abriu a boca de espanto, e antes que me dissesse algo,
contei-lhe o sucedido e a necessidade que tinha de ir a casa, não só
para fazer o desenho que o comandante esperava, mas para vestir uma
farda decente. Apanharia o carro eléctrico à porta do quartel e sairia
em casa, portanto não ía exibir o meu mau aspecto nas ruas da cidade.
E rematei o meu discurso:
— Se o meu aspirante não me autoriza saír, lamento, mas vou ter de
saltar o muro.
— Se fores apanhado pela polícia militar, diz isso mesmo; que saltaste
o muro. Mas não me comprometas. Eu não te vi.  — E virou-me as costas.
Estava autorizado. Fui para casa, e na semana seguinte apresentei-me
lavadinho e com um desenho para o cenário, que o comandante aprovou e
passei alguns dias na prazenteira tarefa de pintar o cenário que foi
apreciado por todos quantos o viram.
A partir dali a minha vida no quartel foi calma. Passei a ser
desenhador com lugar de trabalho junto ao gabinete do comandante, e
participava semanalmente nos ensaios aumentando a minha popularidade.
Assim foi até Setembro (1965) em que recebi ordens de mobilização,
integrei um Batalhão que foi formado em Viana do Castelo e, em
Dezembro, embarquei para Angola a bordo do paquete Vera Cruz. Mas essa
é, já, outra história.>

Onofre Varela

(Trecho do livro ÚCUA, 1966. História da minha experiência militar e
participação na campanha de Angola, à espera de editor)

_________



Posteriormente ao começo da publicação deste texto o Onofre enviou-me mais um "apêndice explicativo".


« A expressão  Condutor Auto-Rodas merece uma explicação. Ela aqui vai:

No tempo em que eu assentei praça, ainda havia, nos quarteis, carroças puxadas a cavalo. 
O CICA tinha uma dessas carroças e o seu respectivo cavalo nas cavalariças que ficavam na parte de trás 
do quartel. E, obviamente, também tinha o seu respectivo condutor, já que conduzir uma carroça era, 
também, uma especialidade.

Por isso havia dois tipos de condutores: os das carroças puxadas a cavalo, e os de automóveis.
Daí haver as designações de Condutor Auto-Rodas
e de Condutor Hipo-Rodas.

...

Já agora acrescento o seguinte:

Assentei praça em Fevereiro de 1965. A última guerra tinha terminado havia 20 anos.
(três anos antes tinha trabalhado na Litografia Invicta, na Rua Duque de Saldanha, que ainda tinha tiras de papel coladas nos vidros das janelas das águas-furtadas, que lá tinham sido postas no tempo da guerra para que. se houvesse um ataque aéreo ao Porto, e bombas caíssem nas redondezas, o papel segurasse o vidro, evitando caír em estilhaços e ferir quem passasse na rua!) (Sou velho comó caralho!... Puta que pariu!...).
E o parque automóvel que eu encontrei na tropa era exactamente igual àquele que vemos nos filmes que documentam episódios da última guerra. Os mesmos jiips, as mesmas GMC com tecto de lona... tudo era igual. O parque automóvel do CICA parecia a arrecadação da MGM de Holliwood...

As matrículas das viaturas ainda eram MG (Ministério da Guerra), mais tarde substituídas por ME (Ministério do Exército). Já eu estava em Angola quando apareceram as primeiras matrículas MX, as quais eram usadas nas novas ambulâncias. e por isso dizíamos representarem o Ministério da Xaúde !   »






E para terminar também me cumpre informar que na próxima sexta-feira dia 22 de Novembro de 2013, pelas 21h 30, na casa da Beira Alta - na rua de Santa Catarina - o autor do futuro livro contará publicamente para todos os interessados mais episódios vividos neste quartel portuense e nas matas dos Dembos, em Angola.

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