Fotografia da autoria de Ernesto de Sousa
Após alguns anos de abandono o cinema Batalha entrou em obras de renovação no ano de 2005. Nos finais desse ano a comunicação social fez eco de algo que era desconhecido de muitos portuenses - os paineis da autoria de Júlio Pomar. Sobre a sua possível recuperação, ou não, foram publicadas algumas linhas que não levantaram a atenção nem do público nem de qualquer organismo oficial.
Na altura publiquei noutro blogue algumas imagens do Batalha assim como dos paineis censurados.
Agora, ao fim de alguns anos publico mais algumas coisas sobre a "história contemporânea" da cidade.
O cinema Batalha foi inaugurado no Verão de 1947 ainda com um dos paineis por concluir.Nessa altura Júlio Pomar encontrava-se preso em Caxias. Uma vez libertado, o artista terminou-o nos finais desse ano. A ordem de ocultação dos paineis surgiu em 1948 num momento de forte repressão à candidatura do General Norton de Matos à Presidência da República.
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Fotografia da autoria de Ernesto de Sousa
Fotografia da autoria de Ernesto de Sousa
«A 3 de Junho de 1947, o novo Batalha, delineado pelo arquitecto Artur Andrade, reabre as suas portas ao público, sucedendo ao antigo Novo Salão High--Life exactamente no mesmo local.
A
Inauguração da nova casa é festejada com um festival de cinema
francês constituído por «Trovadores Malditos», de Carne, «A
Batalha do Rail», de Clement, «A Bela e o Monstro», de Cocteau, e
«A Sinfonia
Pastoral»,
de Delannoy. Da programação do novo Batalha
encarrega-se
Luís Neves Real, cujo nome fica indelevelmente marcado no sector da
exibição, no Porto, e marginalmente ligado à criação do
«Cine-Clube do Porto», a cujas primeiras direcções pertenceu.
A
nova casa de espectáculos é ornamentada com várias obras de arte:
um baixo-relevo na fachada, de Américo Braga, um grande fresco numa
das paredes do patamar que dá para a cave, da autoria de Júlio
Pomar, trabalhos ornamentais de Augusto Gomes, António Sampaio e
Arlindo Gonçalves. Poucos dias depois, uma ordem ridícula, bem
típica do regime salazarista, mandava apagar o fresco de Júlio
Pomar e mutilar o balxo-relevo da fachada (a ceifeira ficou sem foice
e o operário sem o martelo ...). O então presidente da Câmara, dr.
Luís de Pina, embirrou com o traçado de feição moderna do novo
edifício e com a sua decoração, porque não gostava nem de pintura
moderna, nem do Júlio Pomar e aqueles pormenores das figuras
alegóricas da fachada cheiravam-lhe a comunismo …
[
«Fresco»
de Júlio Pomar que decorava uma parede interior do novo Cinema
Batalha, do
Porto, e que foi mandado cobrir por um Presidente da Câmara por
considerá-lo miserabilista e subversivo ... (Representava tão
somente a festa tradicional popular do S. João. O referido «fresco»
já levou nova cobertura e jamais poderá ser recuperado. Era assim
nos tempos da «outra Senhora»). ]
legenda de uma imagem do artigo
Numa
entrevista concedida há relativamente pouco tempo, ao Jornal
de Notícias, o
arquitecto Artur Andrade conta o episódio: «O presidente
da
Câmara considerou que
eu fazia arquitectura comunista e como comunistas classificou todos
os que colaboraram no projecto e na decoração ... e até o eng.
Neves Leal, um dos proprietários. O grande jresco tinha como tema a
festa de S. João. Pintura realista, rica de cor, com figuras de
adultos e de crianças em movimento, balões, tambores, etc. (A
um lado, acrescento eu, havia a figura de um miúdo, acocorado,
comendo qualquer coisa de uma malga. Um miúdo magricelas, um miúdo
da rua. Talvez tivessem falado nisso ao dr. Luís de Pina e tenham
visto aí terríveis intentos subversivos). Fecho o parêntesis para
voltar a dar a palavra ao arquitecto Andrade: «O dr.
Luís de Pina mandou destruir a pintura. Pedi-lhe que fosse ao local
para a ver, apelei para as suas responsabilidades, fiz-lhe sentir que
a Câmara nada tinha a ver com a decoração interior. Tudo em vão.
Não quis ir ver, nem se demoveu, porque — dizia —
«já calculava
o que era»! Tivemos de ceder. Do mesmo modo, umas letras do
alfabeto, colocadas sem formar qualquer palavra, para encher os
espaços vazios desse painel, como estava em uso naquela época, não
escaparam a este tipo de perseguição. O dr. Luís de Pina pretendia
que as letras significassem a conhecida expressão marxista
«proletários de
todos os países, uni-vos» ... Assim mesmo: com o maior despudor, a
maior irresponsabilidade ele interpretava a intenção do artista.
Até as letras dos puxadores das portas mereceram censura. Para o
presidente da Câmara as letras «C»
e «J?» não
pretendiam significar Cinema Batalha. Para ele, bem podiam ser
abreviaturas de «Comité Bolchevista». Estes «pides» da
inteligência, homens que se consideravam intelectuais, que se
diziam ao serviço da Arte e da Ciência, eram somente os servidores
de uma politica contra a liberdade criadora. O que se passou com o
Cinema
Batalha foi
uma autêntica violência, típica do regime fascista.»
O
fresco de Pomar foi coberto a tinta (Creio que sem as precauções
necessárias para um dia, se melhores dias viessem, ser recuperado).
A foice da figura que representava a Agricultura foi tirada da mão
que a empunhava, assim como o martelo foi surripiado à figura
alegórica à Indústria. Para a história do «salazarismo» e dos
seus fiéis servidores, esta é uma das muitas facetas grotescas do
sistemático ataque à arte e à cultura e das inacreditáveis
arbitrariedades impunemente cometidas por qualquer mui ilustre
presidente duma Câmara Municipal...
Passemos
adiante.
Com
nova casa, o Cinema
Batalha mudou
imediatamente de público. Nascia mais um cinema para a burguesia
portuense... morrera para sempre o mais popular cinema do Porto.
O
novo Cinema
Batalha ficou,
por essa altura, ligado a um outro acontecimento: a criação do
«Clne-Clube do Porto». Na incerteza dos primeiros passos desta
associação (também ela mal vista pelas autoridades do regime
salazarista, mais empenhado em embrutecer as pessoas do que em as
despertar para o esclarecimento e a cultura) foi fundamental para o
«Cine-Clube do Porto» poder dispor gratuitamente, durante algum
tempo, e, depois, em condições excepcionais, da sala do Batalha.
A
empresa Neves & Pascaud abdicava de imediatos interesses
comerciais para servir os interesses da cultura cinematográfica. Ê
ainda hoje (embora noutras condições, como é óbvio) que, no
Batalha,
o
«Cine-Clube do Porto» realiza as suas sessões normais. Os laços
estabelecidos em 1948 mantêm-se inalteráveis. Mas foi sobretudo a
cooperação prestada ao «Cine-Clube», nos dias difíceis do seu
arranque, um facto mais a assinalar na longa, longa história deste
cinema, que começou por um simples barracão de feira para os lados
ainda pouco povoados da Boavista, há quase setenta anos!
[
Baixo
relevo da fachada do novo Cinema
Batalha, depois
de terem tirado a foicinha da mão da figura alegórica da
Agricultura e o martelo da mão da figura alegórica da Indústria,
coisas consideradas subversivas... por um regime que não poupava as
obras de arte ]
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legenda de outra imagem do artigo »
Os meus mais sinceros agradecimentos ao Alexandre Pomar que me forneceu, na altura, o texto e as imagens de Ernesto de Sousa aqui apresentadas.
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