24.4.14

Os espaços verdes da cidade.


Por vezes é difícil imaginar o Porto e a vida dos portuenses há uns séculos atrás.

Por acaso encontrei um texto de Horácio Marçal que situa bem no tempo a evolução dos espaços verdes públicos. 

São excertos de um artigo originalmente publicado em "O Tripeiro" de Fevereiro de 1984. 


Aproveito a ocasião para deixar uma pequena nota biográfica sobre este historiador da cidade que encontrei na página da Câmara Municipal de Matosinhos.


HORÁCIO MARÇAL (1906-1988)

Investigador e divulgador de enorme profundidade, da história e cultura regionais, conferencista, participante ativo em diversos congressos.

Horácio António de Almeida Marçal
Horácio Marçal nasceu e morreu no Porto.
Profissional de comércio na cidade do Porto, atividade da qual se veio a reformar em 1982, foi um dos exemplos mais eloquentes do intelectual interessado e empenhado na busca da história do Grande Porto, em geral, e do concelho de Matosinhos, em particular.

Investigador e divulgador de enorme profundidade, da história e cultura regionais,o seu trabalho publicado ultrapassa, largamente, um milhar de artigos, entre prosa e poesia.

Em 1928, iniciou a sua atividade literária no quinzenário académico Alma Lusa, não mais tendo parado no que respeita à investigação e publicação dos mais variados aspetos da cultura e história portuenses. Desde o Jornal de Notícias à revista O Tripeiro, são incontáveis os seus artigos.

Conferencista de grande qualidade, concedeu o seu largo saber em palestras e conferências nas mais diversas coletividades: Orfeão de Matosinhos; Câmara Municipal de Matosinhos, Santa casa da Misericórdia e Associação Recreativa Aurora da Liberdade.

Participante ativo em diversos congressos, foi membro auxiliar da extinta Comissão de Etnografia, anexa ao Museu de Etnografia e História, desde 1950. Durante um quarto de século, e até 1975, ocupou vários cargos na Associação Cultural Amigos do Porto, incluindo os de secretário e secretário-geral da mesma, tendo sido nomeado Sócio de Mérito em 1985. Foi membro da Junta de Conciliação da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, entre 1972-75 e membro da Comissão Executiva da Exposição Cerâmica Portuense – Séculos XIX/XX, realizada na Casa do Infante em 1973.





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«Os artísticos e viridentes jardins que ornametam e embelezam a cidade do Porto, como poderá imaginar-se, não são antigos. São relativamente modernos. O primeiro, que é o de S. Lázaro, tão-somente data do ano de 1834. Todos os restantes começaram a surgir na segunda metade do século passado e alguns são mesmo obra da primeira vintena do século em curso [século XX]. Outro tanto não podemos dizer das alamedas que, essas, sem dúvida, são de origem mais remota.

No tocante às alamedas, a mais antiga foi a do Olival. Porém, igualmente antiga e mais concorrida foi a das Virtudes, embora não faltasse o povo nos outros raros parques da cidade. As Virtudes, diz-nos o jornalista Firmino Pereira, viram passar as mais lindas mulheres dos séculos XVII e XVIII, que foram o ponto de reunião elegante de peraltas e faceiras do velho burgo episcopal, que serviram de recreio a fidalgos, desembargadores e frades.

Com realidade, a Alameda das Virtudes, por fruir atracções fora do comum, foi, sem contestação, o passeio predilecto dos habitantes do Porto de há 300 anos, e tão desejado que, como nos deixou escrito o beneditino Manuel Pereira de Novais, a Porta das Virtudes, ali próxima erguida, teve de ser alargada para "a fácil salida de coches y carrosas y literas que salian a esparcirse por detrás de aquellos assientos prodigiosos de vista".

Como o local entrasse a cair no agrado dos portuenses, a Câmara Municipal, no ano de 1619, para repouso dos frequentadores daquele aprazível logradouro, mandou colocar bancos de pedra ao correr da ladeira de acesso à bonita Fonte do Rio Frio, hoje Monumento Nacional.

Mais tarde, em 1682, a mesma Câmara ordenou a abertura de uma alameda bastante arborizada, para recreação pública, que é o denominado Passeio das Virtudes, belo de verdade, mas pouco ou nada visitado. Das Virtudes, não obstante a concisão, supomos ter dito o suficiente.

Quanto à Alameda do Olival, sabe-se que por Alvará Régio de 28 de Setembro de 1611, ordenou D. Filipe II, com a superintendência do corregedor Manuel Sequeira Novais, que se transformasse o Campo do Olival numa formosa alameda, por lhe parecer que a dita seria de muito ornato e comum beneficio da cidade e demais que as poucas árvores - oliveiras - lá enraizadas, apresentavam-se ressequidas.

Convocados os homens-bons do Porto, para discussão de tão magno problema, ficou resolvido, nessa assembleia, expor os diversos inconvenientes (nele se faziam os alardos e exercícios militares) a D. Filipe, ao que ele, em 13 de Junho de 1612, respondeu peremptoriamente: "Todavia vos advirto e encarrego de novo que, nas coisas que se fizerem por ordem minha não admitais nunca novidade que possa impedir o efeito delas, que assim é conforme vossa obrigação, maior-mente quando se ordenam em beneficio e ornato dessa cidade".

Perante tão firme estimativa, tratou logo o mencionado corregedor de dar andamento à plantação de arvoredo na vasta alameda, arvoredo esse que até ao seu perfeito crescimento ficou guardado, de dia e de noite, por quatro homens.

Essa arborização, constituída por olmeiros ou negrilhos, conservou-se pelo transcorrer de dois séculos; e mais se conservaria se não fora a falta de combustíveis observada durante o memorável Cerco do Porto, que obrigou ao derrube dos ditos olmeiros e de outras árvores, o que não obstou, diga-se de passagem, a que tivesse escapado um,  que hoje e desde 1938, está considerado imóvel de interesse público. Trata-se do robusto negrilho, a que o povo, sem justificação plausível cognominou de Árvore da Forca, presentemente com a existência de três séculos e meio.

Depois das duas alamedas anteriores, em importância, deve colocar-se a das Fontaínhas, mandada construir, sobranceira ao rio Douro. Por D.  Francisco de Almeida e Mendonça, no derradeiro quartel do século XVIII. A espaçosa Alameda das Fontaínhas foi passeio obrigatório dos nossos antepassados, dos que se regozijavam em mostrar a elegância e o requinte das suas vestimentas. Não faltava lá o frondoso arvoredo a dar ao recinto a tão desejada frescura, não faltavam os indispensáveis bancos de granito para descanso dos mais debilitados, nem tão pouco faltava o adorno poético de um chafariz com o respectivo tanque (...).

De muita afluência, também, era a Alameda da Lapa, franqueada ao público no alvorejar do século XIX. Nela, durante longos anos, em despique com os festejos do Bonfim e de Cedofeita, se efectuaram animadas festas ao S. João, com grande arraial e fulgurantes iluminações. No seu leito as senta hoje o edifício do Hospital da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa, a quem pertence, desde 1925, o antigo terreno da alameda, parte dele ainda ajardinado como nos tempos primitivos.

 Menos procurada, embora bem localizada, era a Alameda de Massarelos,       
na beira-rio, rasgada a volta do ano de 1875 num chão oferecido à Câmara Municipal por Joaquim Kopke, Io Barão de Massarelos.

A Alameda do Bonfim, já existente em meados do século passado e que circundava a Igreja Paroquial, era sobre-modo visitada pelo povo das redondezas em virtude da paisagem aliciante que do alto se  vislumbrava numa extensão de muitas léguas em redor. Actualmente, chamam Alameda de Cláudio Carneiro ao espaço ajardinado, de risco moderno, que antecede a escadaria de acesso a igreja.

Ao fundo da Rua de S. Bento da Vitória, de igual forma, havia um lindo miradouro com bancos de pedra e arvoredo, conhecido por Alameda da Vitória (...). Esta pitoresca alameda, durante o nefasto cerco do Porto, por lhe terem lá posto uma bateria de artilheiros, ficou sobremaneira danificada com os projécteis lançados de Vila Nova de Gaia, pelas tropas de D. Miguel. Contudo, depois de terminada a Guerra Civil, foi convenientemente alinhada e resguardada por gradaria de ferro e portão. Nessa altura, substituíram-lhe o designativo toponímico, passando desde então, pelo facto apontado, a chamar-se Jardim da Bateria tia Vitória ou só Jardim da Bateria. (…)

Mais distante, para o Norte da cidade, tivemos outrossim a acolhedora Alameda da Aguardente, mais tarde, como adiante se dirá, transformada em jardim.

Não todos, mas quase todos os jardins do Porto, foram recortados em praças onde outrora se realizavam feiras (ou mercados), no género das muitas ainda hoje em funcionamento por essas terras fora, com pavimentos de natureza terrosa, casas de negócio em redor (mormente de pasto) e ensombradas por árvores de grande porte, que além de proporcionar benéficas sombras, outrossim serviam para nos seus troncos os vendilhões (enquanto comerciavam os seus produtos) amarrarem, pela arreata, as cavalgaduras utilizadas no transporte das mercadorias.

Era a movimentada Feira de S. Miguel, no Campo do Olival, depois transferida para a Rotunda da Boavista e daqui para o Largo da Arca d'Água; era a secular Feira da Farinha, na Praça dos Voluntários da Rainha; a do Pão, na Praça de Santa Teresa, que ao depois mudou para o Mercado do Anjo, quando este, em 1839, abriu ao público; a característica Feira dos Bois e as curiosas Feiras dos Moços da Lavoura, dos Tamancos e das Caixas, todas elas na Praça dos Ferradores, actual Praça de Carlos Alberto; a tradicional Feira da Erva, Lenha e Carvão (em sacos), na Praça do Mirante; a do Gado Suíno, no Campo de S. Lázaro e mais tarde na Praça da Alegria.

No Campo de S. Lázaro, aí pelo século XVII, laboravam os fabricantes de louça grosseira, no qual essa indústria - a olaria - esteve concentrada, bem assim como, anos adiante, ali se efectuava a interessante Feira de S. Lázaro (anual), removida em 1876 para o Campo 24 de Agosto por ser lugar mais amplo; e, tão amplo, que ali se realizavam duas importantíssimas feiras: a do Gado Cavalar (mensal) e a do Gado Bovino (bi-semanal). Com a urbanização e a industrialização do local, levaram a Feira do Gado Bovino, em 1868, para o Largo da Póvoa de Cima; e, a dos Cavalos, em 1892, para a Corujeira.

No Largo de Santo André, pelo alvorecer do século XIX, havia a Feira de Hortaliças e Legumes, Mercado de Leite e a Feira de Sementes, Utensílios Agrícolas, Ferragens, etc, esta última anual.

Na Alameda da Aguardente houve também, desde 1883, um mercado coberto, de estrutura metálica, que foi desmontado, após 12 anos de existência, bem como outro no mesmo género do anterior localizado ao sul do referido Campo 24 de Agosto, desfeito no ano de 1897. (…)

Entre nós, portugueses, nunca foi grande, infelizmente, a paixão pela floricultura. Esse desprendimento ou desinteresse manteve-se, imutável, durante séculos. Pensava-se em tudo, "inclusivamente em luxos, menos em plantas. Cortava-se uma árvore, que leva dúzias de anos a desenvolver-se, como quem corta a pescoceira a um galináceo. A facilidade era a mesma. Não havia o mínimo respeito pela sua conservação. Os particulares, unicamente se preocupavam com as hortas e os pomares. A sedução pelas flores ou plantas decorativas não existia (...).

Só no século XIX é que, verdadeiramente, por diligência de alguns homens de fina sensibilidade, cheios de entusiasmo e boa vontade, co­meçou a prestar-se o devido culto à flor e a dedicar-se-lhe a estima de que ela, por direito, é merecedora. Esses beneméritos a quem a floricultura tanto ficou a dever foram, entre vários outros de menor nomeada, José Marques Loureiro, José Duarte de Oliveira Júnior, o Visconde de Vilar d'Allen e o Conselheiro Aureliano da Silva e Sousa.

Destes, todavia, é justo salientar-se o nome do saudoso floricultor Marques Loureiro que, por volta de 1860, quando tomou de trespasse o Horto das Virtudes, entregou-se de alma e coração, diremos mesmo apaixonadamente, à horticultura, consagrando-lhe toda a sua actividade, todo o seu fervor. Com propriedade podemos afirmar que Marques Loureiro (falecido com 68 anos apenas) foi o precursor da floricultura portuense.

Da propaganda intensiva destes quatro carolas surgiram os jardins da Cordoaria e do Palácio de Cristal, que foram, por assim dizer, o início de tudo quanto em matéria de jardinagem se fez no Porto e até no país (...)»






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