"A RUA DE COSTA CABRAL OU ESTRADA DA CRUZ DAS REGATEIRAS"
Em 1845 foram “reformadas”, segundo o novo plano de estradas do Reino, as da província de Entre Douro e Minho. Vitais, neste plano, eram aquelas que cobriam os acessos ao Porto: as de Guimarães, de Braga e de Penafiel por onde se escoava a maioria do tráfego entre a cidade e as regiões minhotas e durienses. (O terrestre, porque o rio desempenhava, na época, um papel inultrapassado na circulação de mercadorias e pessoas.)
Em substituição da Rua do Lindo Vale, estreita, irregular e mal pavimentada, uma empresa encarregada de efectuar aquelas reformas abriu a grande e moderna via de penetração (inovadoramente pavimentada a macadame) até ao Porto. Atribuíram-lhe o nome do político António Bernardo da Costa Cabral, na altura ministro do Reino que não era ou não veio a ser uma figura apreciada pelos portuenses que preferiram chamar à nova artéria a “”estrada da Cruz das Regateiras””. Em 1851, em sinal de repúdio por aquele baptismo e quando o ministério de Costa Cabral caiu, a população tratou de derrubar a pedra que, junto ao Marquês, assinalava o início e a designação da rua. Porém, a tradição e a vontade dos populares não conseguiram impor-se e tanto o nome de Cruz das Regateiras como o de estrada desapareceu definitivamente – ao contrário de outros topónimos – e Costa Cabral ficou nome assente e enraizado. Curiosamente aponte-se que, nos meados do século XIX, os lugares atravessados pela rua eram tão excêntricos que o Município recusou arcar com a despesa da abertura da mesma, alegando tratar-se de uma obra “”fora das barreiras” da cidade…
Atravessando terrenos rurais, quintas e casas, a Rua de Costa Cabral rompeu com a imagem dos arruamentos da zona, caminhos mais ou menos aldeãos e irregulares. Alguns eram, todavia, inegavelmente, úteis e calcorreados, pois, através deles, viajantes e vizinhos dirigiam-se para as Antas ou para o Campo Grande (24 de Agosto). Passavam pelas Goelas de Pau e Bonfim. Seguiam ainda para Campanha e, por outro lado, para as diversas aldeias de Paranhos (então campos e mais campos).
Centro de irradiação de caminhos e referência obrigatória na saída da cidade, eis a Cruz das Regateiras (aliás Largo 25 de Março, aliás, Largo da Cruz).
Lojas de merceeiro e de vinhos animavam o local, povoado e construído. Algumas casas do século XIX e uma pequena escadaria, uma viela tranquila e praticamente rural é tudo o que resta do sítio antigo. Mas, com as suas árvores vigorosas, o seu chafariz de ferro fundido, de lampião em cima, raro, o mictório de ferro que ainda subsiste, na entrada da Rua de Contumil, o Largo da Cruz é um pedaço da Porto arrabaldino que se desagrega, tragado pelos apetites imobiliários. Da Cruz para poente seguia, no século passado, um caminho que deu origem à viela (e depois rua) do Relógio, hoje com a metade norte absorvida pela abertura da Avenida de D. João II. A origem daquele nome radica no relógio de sol do palacete do Dr. Jaime Magalhães, já demolido, que ficava na esquina da Rua Pereira Reis (este relógio está depositado no Museu de Etnografia e História).
Ligando a Praça do Marquês à estrada da Circunvalação, na Areosa, a Rua de Costa Cabral é a mais extensa do Porto. Desenvolve-se em linhas rectas que lhe dão um traçado uniforme; inflecte, porém, decididamente para o interior sem que disso o transeunte se dê conta. Essas parcelas rectilíneas definem zonas residenciais com diversos estilos de construções. Do Marquês até Silva Tapada encontra-se uma fileira de habitações (só interrompida por alguns cruzamentos), algumas notáveis no quadro da arquitectura portuense oitocentista. São de referir as que, ao nível dos telhados (no 2º. Ou 3º. Andares), apresentam uma varanda-miradouro «para apanhar o fresco». Antes da Avenida dos Combatentes aponta-se o Palacete do Lima que abriga a sede do Académico, clube que chegou a atingir grande nível no panorama desportivo da cidade e do país (o seu recinto de jogos, o «Estádio do Lima», foi, durante décadas, o único relvado do Porto, tendo assistido a alguns dos maiores acontecimentos em inúmeras modalidades. Futebol, caseiro ou internacional; andebol de 11, que enchia o estádio quando era contra a Espanha; ciclismo – as noites das «perseguições» e das voltas a Portugal; atletismo… Tudo por ali passava: desde o S. Lorenzo de Almagro – que «deu onze ao Porto» - até ao Elvas do Patalino… Numa miseranda operação a que ninguém teve coragem de se opor, o Estádio do Lima foi destroçado há anos para construírem «arranha-céus». Lá deveria ter ficado um parque desportivo polivalente ao serviço da juventude da cidade.
Logo a seguir ao Palacete do Lima está o grande edifício que pertenceu a uma das fábricas portuenses do Tabaco. Nele é magistral a marquise que cobre o vão de uma das entradas, bem como a grade do muro junto da rua, admirável conjugação das artes de ferreiro e vidraceiro. Depois, quase fronteiro à Rua do Lima, está o edifício do cinema Júlio Dinis, dos anos 40. Uma empresa alemã adquiriu-o para exibição de filmes daquela procedência. Trata-se de um imóvel evidentemente estranho ao padrão arquitectónico do local. De um desenho geometrizado em linhas rectas, funcional, sem efeitos decorativos e pintado de cor rosada, sempre se destacou do ambiente da rua. O projecto, importado da arquitectura modernista da época, dá, afinal, ao cinema, o valor de um documento estético que a cultura portuense assimilou e que deve ser conservado. Vem, depois, o cruzamento com a Avenida dos Combatentes (convite para uma deambulação sob o túnel dos plátanos do seu passeio central).Próximo da Igreja das Antas, dentro de um alto muro, encontram-se os magníficos parques e Casa dos Cepedas, armoriada, do século XVIII, um paraíso de sossego. (É interessante a cor amarela de todo o conjunto construído e notável o portão de ferro).
E sigamos por Costa Cabral. Alguns vandalismos recentes e gaiolas abstrusas se nos deparam. Depois da Rua de Joaquim Pires de Lima e até ao cruzamento que os portuenses conhecem como «Silva Tapada» (nome da rua que lá principia) há uma série de boa arquitectura em habitações no estilo do fim do século: a harmonia cuidada da porta lateral, uma ou duas janelas ao lado, primeiros andares com varandas ou janelas, etc. Tudo alinhado. Tudo certo. No granito, no ferro, no azulejo. Sabia-se construir… Pelo meio, aparecem os caixotes. Nesta correnteza, pode visitar a Casa Museu de Fernando de Castro, onde viveu o poeta, coleccionador e homem rico que, se não se destacou nas letras, ao menos legou à cidade as suas obras de arte, com relevo para uma colecção importante de pintura portuguesa.
Após Silva Tapada e até ao Largo da Cruz, a rua alarga um tanto em nova recta. Aqui a burguesia portuense – já do século vinte – fez construir as suas moradias que assinalam uma época de excelente arquitectura, com pormenores de grande requinte decorativo (portas, varandas, lavrados de cantaria, grades, azulejos) formando um conjunto extraordinariamente correcto (que, como seria de esperar, corre riscos, pois alguns atentados já o atingiram). Passado o Largo da Cruz, Costa Cabral começa a transformar-se numa rua incaracterística, de péssima arquitectura, nem moderna nem antiga, ou que nem é arquitectura, mas indigência cultural. Aqui e ali alguns bons prédios sobrevivem miraculosamente. Antes da Areosa pressente-se, em construções baixas, nalguns muros desalinhados, em certas habitações (especialmente umas muito pequenas, recuadas, próximo do cruzamento com a Rua de Santa Justa) a marca rural da antiga (e que continua a ser) estrada de Guimarães, restos de um tempo em que ela era um distanta, muito distante, caminho através dos campos, no território maiato.”
Helder Pacheco
in Porto
Novos Guias de Portugal
Editorial Presença
agradeço a Francisco Oliveira a colaboração em recolha de texto e de oferta de fotografias para a elaboração desta página