21.9.07

O Forte da Ervilha

"O período mais empolgante da história do Porto é, para mim, o do Cerco que, entre 22 de Agosto de 1832 e 18 de Agosto de 1833, lhe foi imposto pelo exército Absolutista. Defendido por um corpo de 8 000 homens do exército liberal, o burgo foi sitiado por cerca de 80.000 soldados, providos de larga superioridade também de armamento. A partir de 26 de Julho, em que D. Pedro e o seu Conselho Militar, perante os insucessos das acções ofensivas, optaram por uma guerra defensiva, a sorte da cidade estava traçada resistir a todo o custo ("a guerra seria um cerco; o Porto um baluarte defendido pelas suas íngremes encostas, pelo fosso natural do rio, ligado ao Mundo pelo cordão umbilical da Foz; um baluarte de gente perdidamente heróica, no meio de um aluvião de soldados; um ponto, como uma ilha no vasto pélago do reino inteiro miguelista!", Oliveira Martins). Meses depois, a situação tornar-se-ia quase desesperada e tudo os portuenses tiveram de suportar: fome, epidemias (cólera e tifo), deserções de soldados, bombardeamentos e destruições. (Oliveira Martins: "As noites seguiram tremendas, com o céu constelado de estrelas errantes portadoras de morte. Havia tifos e a fome era já tanta que os soldados de Shaw saíam a caçar os cães que vinham cevar-se nos cadáveres, para os venderem à libra às casas de pasto. Havia frio sem lenha.")

A defesa da cidade, delineada por Bernardo Sá Nogueira, assentava num sistema de fortificações - as "linhas" - constituído por parapeitos, trincheiras e fossos, guarnecidos por estacadas. As linhas iam, inicialmente, da Quinta da China até ao Bicalho, passando pelo Padrão de Campanhã, Lomba, Bonfim, Póvoa de Cima, Aguardente, Monte Pedral, Carvalhido, Bom Sucesso. Ao longo delas, havia redutos e batarias. Posteriormente, seriam ampliadas do Carvalhido por Francos, Van Zeller e Pasteleiro até à Senhora da Luz.

Fora das linhas, nuns sítios próximos, noutros afastadas, os miguelistas construíram também batarias e fortes. Alguns destacavam-se pela sua importância, entre os quais o da Ervilha. Construído em 1832, aproveitando talvez a elevação (com 4x6 metros) já utilizada como Linha de Defesa do Porto, em 1809, contra os franceses, dominava a vizinhança e tinha ligação visual com elevações semelhantes, cuja utilização militar concedia relativo domínio sobre as forças inimigas postadas nas proximidades. Em cima, existiam duas pequenas grutas servindo de paiolins ou de abrigos das guarnições dos canhões ali postados.

O Espaldão ou Forte da Ervilha, juntamente com os do Monte do Crasto e de Serralves, integrava um conjunto fortemente organizado das linhas sitiantes. Eram obras bem concebidas e executadas, rodeadas por muros de sebes e estevas, reforçados com parapeitos à prova de bala. No interior, havia instalações para as guarnições. Em 24.1.1833, o forte foi atacado e temporariamente ocupado por uma força liberal, na tentativa de o neutralizar. O que resta do Forte da Ervilha constitui a única posição desta área fortificada ainda existente e único vestígio material da saga heróica das Linhas do Porto e testemunho essencial à memória histórica da cidade.

Há quase 25 anos, o meu saudoso amigo Manuel Matos Fernandes levou-me lá e mostrou-me o sítio, ainda como elevação verdejante, homogénea, mostrando nítidos sulcos que seriam marcas dos rodados das peças de artilharia. O aspecto geral parecia estabilizado mas, à volta, a construção civil começava a aproximar-se. Aquele tripeiro indefectível falou-me da sua preocupação quanto ao futuro do "monumento" e facultou-me um documento que elaborara no sentido de defendê-lo perante ataques, não já dos combatentes do cerco, mas de inimigos mais insidiosos. Nesse documento, dizia "Este lugar ainda não desfeito pela construção civil está na iminência de o ser, se nada ou ninguém o preservar. Sugeria-se a sua manutenção como espaço verde no meio do cimento, onde, por meio de uma lápide, se recorde a quem por ali passe os eventos históricos que neste lugar aconteceram."

Tempos depois, o ataque estava em curso e o espaldão convertera-se em terreno de actuação de motoqueiros, que devastaram a sua cobertura vegetal, arrasaram o cume e destruíram as marcas dos canhões. À volta, crescia o mato e os caixotes aproximavam-se. A abertura de uma rua ameaçava-o. Felizmente a rua (Prof. Rudolfo Abreu) desviou-se e passou ao lado (o que poderá, pela acessibilidade, valorizar o monumento). Mas com ela poderá vir o assalto imobiliário definitivo. Por tudo isto, pela salvaguarda da memória do Porto, pela consciência histórica da cidade, pelo respeito devido ao heroísmo do burgo na defesa da liberdade, apelo à Câmara Municipal para que fique lembrada pela protecção e valorização deste sítio venerável da cidade que se tornou "Heróica, Eterna e Invicta", e rejeite colocar-se ao lado da «série patológica de delinquentes" (Ramalho Ortigão dixit) que têm destruído o espírito do burgo."

Texto de Hélder Pacheco , Professor e escritor, publicado no Jornal de Notícias


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