Naquele sinistro casarão, que faz esquina da Rua do Heroísmo com o
Largo de Soares dos Reis (agora Largo de Catarina Eufêmia), e onde
muitas pessoas mudavam de passeio para se afastarem da sua
proximidade, funcionou, durante longos anos, a Delegação no Porto
da PIDE, a que Marcelo Caetano, numa mera mudança de designação,
passou a chamar DGS. A PfDE-DGS do Porto tinha duas entradas : uma
pelo Largo de Soares dos Reis, com escadas de passadeira e contínuos
fardados, era a entrada para «inglês ver», a entrada «oficial»,
onde eram atendidos os que ali eram chamados ou iam tratar de
qualquer problema de passaportes, nomeadamente os estrangeiros; a
outra era a face real da PIDE, na Rua do Heroísmo (e nunca o nome de
uma rua foi tanto o símbolo dos que lá entravam e conseguiam
resistir às torturas), um portão de ferro, com uma pequena porta de
entrada, a dois palmos do chão, que só se abria para deixar entrar
os presos ou os seus familiares, que os iam visitar, e que
estabelecia contacto com o átrio de acesso às prisões (celas,
quartos e salas) e ao curto lanço de escadas de acesso, pelo lado
real, do edifício onde funcionavam todos os departamentos da
PIDE-DGS, desde as salas de escuta telefónica e gravações, até
aos gabinetes dos chefes, inspectores e director, e àqueles, no
último andar, onde os presos eram interrogados e torturados. Quem
entrava pela escada de passadeira do Largo de Soares dos Reis, e
assim não passava desta parte do edifício, nunca podia fazer ideia
de tudo aquilo que constituía a verdadeira PIDE, e que estava para
lá daquela fachada. Esta série de fotografias da Delegação no
Porto da PIDE-DGS, obtidas logo após o 25 de Abril, desde a
complicada aparelhagem de escuta telefónica e gravação, os montes
de livros apreendidos, as pastas de processos individuais, que vão
até ao número 53067, o enorme ficheiro de 80 gavetas, o parlatório
das visitas, o arsenal de armas amontoadas, o luxo do gabinete do
director contrastando com a pobreza rudimentar das saias dos presos,
até aos relatórios, meio calcinados, de gravações telefónicas, o
envelope apreendido duma carta, agentes da PIDE-DGS ocultando as
caras, já conduzidos sob prisão, a alegria da saída dos presos e a
essa extraordinária imagem de um soldado erguendo um ramo de cravos
no meio da alegria de milhares de populares, que, até à hora da
rendição da PIDE, apoiaram as Forças Armadas, estando sempre a seu
lado, constituem imagens que se não podem esquecer. Sem serem tudo o
que era a sede da PIDE no Porto — basta lembrar a falta de
fotografias das celas subterrâneas onde os presos, às escuras ou
com a escassa luz dos estreitos postigos gradeados à altura das
pernas de quem passava na Rua do Heroísmo, cumpriam longos períodos
da chamada incomunicabilidade, com um balde a substituir as funções
de retrete, constituem, porém, um primeiro documentário sobre as
instalações da PIDE-DGS que ilustra os brutais e maquiavélicos
métodos de actuação desta polícia do fascismo português, que foi
um dos seus órgãos fundamentais para a implantação e a
sobrevivência do regime de domínio violento das mais reaccionárias
camadas do grande capital monopolista sobre o povo português,
durante quarenta e oito anos.
Forçada a organizar-se, em moldes de legalização, em 1945, com a
vitória das Nações Unidas sobre o fascismo, a PIDE apresentava, em
relação aos processos crimes de direito comum, a insólita
peculiaridade de os seus processos políticos, após as declarações
dos arguidos, apresentarem em seguida a afirmação, subscrita por
dois agentes, de que aquelas declarações tinham sido prestadas «sem
qualquer espécie de coação ou violência», como se coação não
fosse só por si a própria entrada do preso na PIDE, dado o pavor
que a sua actuação despertava na generalidade das pessoas, e como
se violência não fosse também a prisão por meros delitos de
opinião e todo o regime penal dos presos políticos, sujeitos, além
do mais, a um regime «legal» de seis meses de prisão preventiva!
Durante perto de vinte anos, todos os processos organizados pela PIDE
aos presos políticos não deixavam de acrescentar às declarações
dos arguidos esta afirmação abonatória, subscrita por dois
agentes, de que as declarações, afinal obtidas através dos mais
sórdidos meios de tortura, «tinham sido prestadas sem qualquer
espécie de coacção ou violência». E só depois de, nos
julgamentos dos Tribunais Plenários, os advogados que defendiam os
presos políticos começarem a denunciar tal fórmula como prova
indirecta da coacção e da violência nos interrogatórios e
respectivas declarações, pois se elas não existissem não seria
preciso admitir a sua probabilidade e negá-la sistematicamente, a
PIDE acabou por abandonar a fórmula, que mais a comprometia do que a
defendia, ao contrário das suas intenções.
Era, de resto, tal o estado de coacção dos presos que, em 1931,
após o assassínio pela PSP dó estudante João Martins Branco, ao
oficial da PSP que comandara o assalto à reunião dos estudantes do
Porto, estudantes de Medicina, mandaram, pelo correio, a cabeça dum
cadáver; a PIDE prendeu diversos estudantes, entre eles António
Ramos de Almeida, que viria a ser um conhecido escritor e lutador
antifascista, infelizmente já há anos falecido, e que tinha então
apenas 17 anos. Conduzido à presença de um chefe da PIDE para ser
interrogado, em cuja secretária estava a cabeça do cadáver enviada
ao oficial da PSP, e à pergunta se sabia de quem era aquela cabeça,
Ramos de Almeida, tal era já em 1931 a reputação da PIDE, e tão
alheio estava à acusação, que respondeu ser aquela a «cabeça dum
preso».
A quem, desde 1949, pôde prestar, a mais de setenta presos
políticos, a solidariedade de tomar a sua defesa, em trinta e dois
processos, estas imagens são inseparáveis dos nomes de tantos dos
melhores filhos do nosso Povo que passaram peta Delegação no Porto
da PIDE-DGS e ali foram torturados, com as mais requintadas torturas,
desde o isolamento de semanas e meses, em celas subterrâneas, até
às selváticas agressões a soco, a pontapé e a cavalo-marinho, aos
insultos mais soezes e à «estátua» e privação do sono, durante
dias e noites consecutivas. Rever as instalações da PIDE é,
necessariamente, recordar, além de tantos outros, os 16 mineiros de
São Pedro da Cova, ali presos em 1959, os 15 trabalhadores de Fafe,
ali presos em 1951, os 5 trabalhadores de Custóias, igualmente ali
presos em 1950, os 4 padeiros do Porto, também ali presos em 1959, e
até praticamente uma aldeia inteira de Montalegre, com homens e
mulheres, velhos e novos, que encheu as prisões da PIDE, sob a
acusação de ter ajudado dois guerrilheiros espanhóis que se haviam
refugiado em Portugal, após o termo da guerra civil espanhola.
E recordar igualmente tantos antifascistas que por ali passaram, a
maior parte várias vezes, e ali sofreram corajosamente longas
prisões, com todo o seu cortejo de arbitrariedades e prepotências,
como Ruy Luis Gomes, Óscar Lopes, Virgínia Moura, Lobão Vital,
António Macedo, Mário e Carlos Cal Brandão, do Porto; Vítor de Sá
e Humberto Soeiro, de Braga; Lino Lima, de Vila Nova de Famalicão;
António Ribeiro da Silva, de Viana do Castelo; e tantos outros cuja
enumeração seria praticamente infindável.
E evocar ainda os militantes do Partido Comunista Português, o
grande Partido da resistência contra o fascismo em Portugal, sobre
os quais a PIDE desencadeou sempre a mais feroz repressão,
submetendo-os às mais violentas formas de tortura, sem conseguir
vergar a sua permanente atitude de luta contra o fascismo até com
desprezo da própria vida, para o que bastará lembrar os nomes de
alguns desses heróis da luta antifascista que continuam hoje um
combate que iniciaram há já longos anos, em plena juventude, e que
na Delegação no Porto da PIDE começaram a sofrer as brutais
torturas, como Carlos Costa, de Fafe, em 1948, com pouco mais de
vinte anos, mantido isolado durante cinco meses, e cujo pai foi preso
como refém, durante 20 dias, como odiosa tentativa de obrigar Carlos
Costa a ceder, e cuja absoluta negativa lhe haveria de valer a
absolvição no Plenário mas a condenação em medida de segurança
de internamento de 6 meses a 3 anos, por ser considerado «perigoso»,
o que constituiu o único caso de aplicação somente de medida de
segurança no Plenário do Porto; Jorge Araújo, do Porto, preso a
primeira vez em 1958, com 22 anos, e que ali viria a ser agredido a
soco, a pontapé, e à régua, nas partes mais sensíveis do corpo, e
que esteve 11 dias e 11 noites sem dormir; Mário Sena Lopes, do
Porto, preso em 1961, agredido a soco e a pontapé, e batendo-lhe com
a cabeça nas paredes, 7 dias e 6 noites sem dormir, um ano e quatro
meses em regime de isolamento; Maria José Ribeiro, de Matosinhos,
presa em 1962, com 26 anos, agredida a soco e com um chicote, um mês
incomunicável; Hernâni Silva, do Porto, preso a primeira vez em
1950, com 23 anos, agredido a soco por 5 agentes, ao ponto de lhe
rebentar o sangue pelo nariz e ouvidos, e chicoteado nas pernas
durante sete horas, um dia; e 5 horas noutro dia, 14 dias às escuras
numa cela subterrânea, e novamente preso em 1952, e cinco meses e
meio isolado nas celas subterrâneas; Mário Araújo, de Fafe, preso,
a primeira vez, em 1956, com 20 anos, mantido 6 meses numa cela
subterrânea; e muitos outros que nas instalações no Porto da PIDE
começaram a ser vitimas da sua abnegada e heróica luta contra o
fascismo e em defesa do povo português.
E, finalmente, não se pode deixar de recordar os nomes de alguns dos
assassinados pela PIDE no Porto, como Gervásio da Costa, operário
têxtil de Fafe, que em consequência das torturas tuberculizou, em
1949, na Delegação no Porto da PIDE, vindo a morrer pouco depois;
Manuel da Silva Júnior, de Viana do Castelo, que a PIDE pretendeu
ter-se «suicidado» em 3 de Março de 1957, tal como pretendeu
também apresentar como «suicídio», em 13 de Fevereiro de 1957, a
morte do barbeiro de Fafe, Joaquim Lemos de Oliveira, após nove dias
e nove noites da tortura da «estátua» e com as agressões de que
foi vitima a soco, a pontapé e a cavalo-marinho.
As imagens da Delegação da PIDE-DGS no Porto estão
indissoluvelmente ligadas a tantos vivos e mortos que ali foram
torturados. E será com a trágica recordação dessas imagens que o
povo português saberá dizer não ao fascismo. O fascismo não
voltará a Portugal. O fascismo não passará.
Raul Castro
Texto publicado em "O ÚLTIMO DIA DA PIDE 26 DE ABRIL NO PORTO"
(edição do Movimento Democrático do Porto - 1974)
Duas notas sobre a rua do Heroísmo:
- Já teve o nome de Rua do Alecrim, rua de S. Lázaro e rua do 29 de Setembro.
- "Na planta de Costa Lima, de 1839, aparece como Rua de 29 de Setembro. Derivava aquele topónimo da evocação do mais sanguinolento combate durante o cerco, na Quinta da China, nesse dia e mês de 1832, entre liberais e miguelistas. Recebeu o nome de Rua do Heroísmo para lembrar os actos valorosos praticados nesse recontro de 29 de Setembro. Já assim se chamava em 1877... "
"Toponímia Portuense" de Eugénio Andrea da Cunha e Freitas
Sobre o edifício: Actualmente é ocupado pelo Museu Militar do Porto. Alguns anexos do tempo da Pide já foram destruídos, nomeadamente aqueles que se encontravam junto do portão da rua do Heroísmo. Bem ao fundo ainda se encontra um pavilhão onde há poucos anos era visível a inscrição "P. V. D. E." (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado).
2 comentários:
Boa noite...é bom reavivar "alguns" espíritos ou ensinar os que quando nasceram já não tiveram as recomendações do "silêncio". Mas fiquei à espera de ver o que ocupa hoje o edifício...
OASIS:
Como eu disse actualmente a parte inferior do edifício está ocupada pelo Museu Militar.
Colecções de soldadinhos de chumbo e outras coisas difíceis de fotografar. Alguns carros de combate e peças de artiharia encontram-se no pátio. Um pavilhão anexo acolhe exposições temporárias.
O meu objectivo no blogue não é mostrar tudo, é sobretudo provocar as pessoas a irem descobrir ou ficarem a saber que há uma história por trás de cada muro...
Obrigado pelo comentário.
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