Um estimado amigo e leitor atento destes modestos trabalhos ofereceu-me, há dias, o prospecto publicitário que ilustra a crónica de hoje. Mas fez acompanhar a oferta de uma, digamos assim, intimação "Diga onde fica essa artéria porque, das muitas pessoas que consultei, ninguém soube dizer onde é…" Pois não. Pela simples razão de que a rua em causa mudou de nome. Já não se chama Travessa da Praça da Trindade. Mas não é muito difícil adivinhar onde ficava. É a actual Rua do dr. Ricardo Jorge.
Este é o prospecto. Publicita um tipo de comércio já desaparecido
Esta não foi, porém, a única mudança de nome que a rua teve. E julgo que vale a pena ficarmos a conhecer um pouco mais da história da discreta artéria , do tempo em que o recheio das lojas extravasava para o passeio e, às vezes, como é o caso (atente-se bem na imagem), para o próprio leito da rua.
Vamos pois à história. A folha 14 do Livro de Plantas da Cidade do Porto (número 2), que se guarda no nosso Arquivo Histórico Municipal, representa a planta, de um projecto urbanístico de 1761 denominada Planta do Bairro dos Laranjais, da autoria do sargento-mor de Infantaria, com o exercício de engenheiro, Francisco Xavier do Rego. Aí estão delineadas algumas artérias. Umas que já existiam, caso das ruas do Bonjardim e de Santo Ovídio, esta agora denominada dos Mártires da Liberdade; outras em projecto, que são as ruas do Almada e da Conceição; e uma que desapareceu. Chamava-se, na altura, Rua de Santo António dos Lavadouros depois ficou só dos Lavadouros e desapareceu com a abertura da Avenida dos Aliados.
Na mesma planta está prevista a abertura de mais duas novas artérias a que ainda não havia sido dada qualquer denominação. Uma delas nunca chegou a ser rasgada. Ligaria em linha recta a actual Rua dos Mártires da Liberdade a Liceiras. A outra unia duas praças também em projecto a Praça da Conceição, depois Largo da Picaria e que é hoje o Largo de Mompilher, com a Praça da Trindade, assim chamada por ficar diante da igreja da Ordem Trinitária, que substituiu a Ordem Terceira de S. Domingos, extinta em 1755, na sequência de um conflito com os dominicanos. Neste mesmo espaço, onde se ergue a igreja daquela Ordem, riscada pelo arquitecto Carlos Amarante, faziam-se, antes, duas importantes feiras: uma de erva e de palha e outra de carneiros. Por isso também se deu a este largo o nome de Praça da Erva.
Voltemos à rua projectada para ligar o Largo de Mompilher à Praça da Trindade. O leitor já concluiu, sem grande esforço, naturalmente, que se trata da actual Rua do dr. Ricardo Jorge. Mas nem sempre teve esta nomenclatura. Inicialmente teve duas designações. Entre a Praça da Conceição e a Rua do Almada chamou-se Travessa do Pinheiro por causa da sua proximidade à rua deste nome. Da Rua do Almada até à Praça da Trindade começou por se chamar Travessa do Laranjal, o que se compreende se tivermos em conta que o largo em frente à igreja antes de se chamar Praça da Trindade foi Largo do Laranjal. A partir de 1776, aparece denominada de Travessa da Rua do Almada. Mas numa planta da autoria do arquitecto Teodoro de Sousa Maldonado, datada de 1787, é designada como a Travessa da Chancelaria. Só a partir de 1846 é que aparece como a Travessa da Trindade e, posteriormente, como Travessa da Praça da Trindade.
A actual designação homenageia a memória de uma figura ilustre do Porto que toda a gente conhece como médico higienista. Mas Ricardo Jorge foi também um eminente escritor, historiador, crítico de arte e um purista da língua portuguesa. O seu estudo sobre as origens e o desenvolvimento do Porto é a melhor obra que até hoje se escreveu sobre esse complexo assunto.
Houve tempos
em que o negócio
extravasava
do interior da loja
para o meio da rua
O chafariz do Laranjal
O emblema do antigo Largo do Laranjal, depois Praça da Trindade, foi o chafariz que passou à história, exactamente, com o nome do largo. Inicialmente era uma fonte, a Fonte da Trindade, que funcionou desde 22 de Junho de 1844 até Maio de 1853. Neste ano fizeram-se obras na já então denominada Praça da Trindade para rebaixamento do leito e a fonte foi demolida. As suas pedras, provenientes da demolição, foram recolhidas num terreno de Liceiras, para uma eventual reconstituição. Que nunca chegou a fazer-se. Com efeito havia sido demolido, também, um chafariz que, desde o século XVI, pelo menos, estava no meio do Largo de S. Domingos. Foi este que acabou por ser reconstruído na Praça da Trindade. A sua inauguração ocor-reu no dia 11 de Março de 1854. Mas não ficou ali definitivamente. Novas obras na praça em 1911 e o chafariz foi transferido para os jardins dos SMAS sendo substituído por um simples fontenário "com água da Companhia". Só há relativamente poucos anos (1960) é que voltou para a Praça da Trindade, agora como mero objecto de decorativo. Gravada no bordo de uma das suas taças tem uma legenda em latim "REIP - VSIV - DICATVM - COMMUNI". Que significa: "Ao uso do povo".
Texto de Germano Silva publicado no Jornal de Notícias
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