28.3.08

S. Brás

O coronel Owen, no seu relato sobre o Cerco do Porto, aponta como 8.ª Bateria das linhas que o protegiam uma colocada "em S. Brás para para defender o Lindo Vale". Também Alberto Pimentel a situa próxima do Monte Pedral, "centro da linha, sob o auxílio da bateria de S. Brás, que protegia aquele Vale". A bateria ficava no ponto mais alto da rua do mesmo nome e Eugénio Cunha e Freitas considera que, quando esta foi aberta, teria recebido o nome daquele reduto liberal. O mais provável, porém, é que rua e bateria colhessem a designação de anterior devoção religiosa ali existente, dedicada a um santo popular na região do Porto pelas virtudes curativas dos achaques da garganta.

De qualquer modo, interessa para aqui o facto de, ao longo da segunda metade do século XIX, na nova artéria de expansão da cidade para Norte, a partir de Santo Ovídio, se terem implantado residências da pequena e média burguesia portuense e, pelas proximidades do grande pólo fabril de Salgueiros, inúmeras ilhas (ou, nuns casos, bairros). Não admira, de igual modo, o aparecimento de manifestações de uma certa cultura popular, operária, característica daquele Porto profundo que o tempo e as mudanças sociais vão desvanecendo.

Dos bairros, destacavam-se o da Coreia e o dos Verdetes, este há muito demolido, que adquirira o nome da alcunha de uma família da zona. E, de entre as figuras típicas e apreciadas da rua, destacava-se (nos anos 20 ou 30) a bruxa de S. Brás, Armandina de seu nome.

Era uma mulher baixa, vestida de preto, muito respeitada pela vizinhança do bairro da Lapa e redondezas. Tinha a casa sempre cheia de clientes e um dos serviços mais comuns que lhes prestava era espantar o diabo, ao sábado à noite, do cemitério da Lapa (que confina com a zona baixa da rua). Para tal operação arranjava um galo e pedia ajuda a catraios, que lhe serviam de assistentes, pagando-lhes vinte e cinco tostões pelo serviço.

Nada mal para a época. Estes lançavam o galo de um sítio alto, em momento previamente combinado, e o bicho esvoaçando no escuro, para as almas incrédulas, passava pelo mafarrico a fugir dos poderes da bruxa. Depois, os miúdos percorriam o bairro à procura do bicho, e quem o encontrasse chegava a casa com um inesperado pitéu para o almoço familiar de domingo.

Nesta comunidade solidária, também existia um daqueles "lugares de encontro sem etiquetas que alimentavam a vida dos bairros" (Christopher Lasch, que lhes chamava "pátrias da conversa") o tasco do Se Zé. O dono desempenhava, além do mais, a importante função de construir os bonecos do Judas que, em sábado de Aleluia, eram queimados no meio de grande foguetório e bichas de rabiar. Inicialmente realizada às dez da manhã, a função passou a ter lugar à noite, que dava outro efeito (arrelampando o Diabo de serviço, que, na altura dos estoiros, nem precisava de galo ou bruxa para se pôr ao fresco). Mas, se a Páscoa era uma festa, o S. João da rua não lhe ficava atrás. Com cascata, luminárias, música e arraial e, em 1953, ornamentações. Para isso, em 20 de Julho daquele ano, o cidadão Alberto Lajes, ali morador, entregava na C.M.P. um pedido de licenciamento para a colocação dos mastros para a festa.

Sendo os meados do século XX ainda anos de ouro de lugares e colectividades que, para Lasch, definiam "as raízes da coesão social a partir de pressupostos comuns tão profundamente inscritos na vida de todos os dias", a rua possuía o Grupo Excursionista "Os Amigos de S. Braz". Fundado em 8.8.1954, integrava (contrariamente a outros, só masculinos) nove homens e oito mulheres. O seu 6.º Passeio Anual realizou-se entre 28 de Agosto e 1 de Setembro de 1960, com partida às 5 da manhã do Porto para Coimbra (pequeno-almoço), seguia para Tomar (almoço na Pensão Tomarense) e Lisboa (Pensão Lusitana), onde ficavam três dias. De regresso, saíam às 7 da manhã, para Estoril, Cascais, Sintra, Nazaré, Batalha e Leiria (almoço na Pensão Castelo), depois para Aveiro (jantar de confraternização na Casa Birra) e até ao Porto. Contentes por terem visto o país, que, para eles, era o turismo possível. Fraternalmente, como diziam na Saudação constante do Programa dirigida aos "Grupos congéneres, assim como toda a população das lindas terras por onde passam, formulando a todos votos de grandes prosperidades."

Tudo isto desapareceu. O mundo mudou e a cidade também. Para melhor e para pior. A perda do sentido da vida em comum está nesta última categoria. Como escrevia Ray Oldenburg num livro magnífico de título compridíssimo sobre "Os Bons Velhos Lugares", etc. "Aqueles que pretendem que os centros comerciais favorecem um novo sentimento de comunidade resvalam nas margens do absurdo mais total". E explica: "Enquanto a rua apresenta uma grande riqueza humana", o centro comercial "é amálgama flutuante de não-pessoas".

Hélder Pacheco
publicado no Jornal de Notícias



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