21.10.08

Cruzes e cruzeiros da devoção da cidade

«Mais ou menos a meio da Rua da Vitória, na freguesia deste nome, e na confluência da Rua do Monte dos Judeus com a Calçada das Virtudes, no típico bairro de Miragaia, há duas cruzes rudemente talhadas no granito duro da nossa região.

A primeira está sobre um muro, num recanto da artéria, meio escondida por estar envolta em arbustos que crescem livremente por efeito da chuva e do sol. A segunda serve de adorno à parte cimeira de um portal de acesso a um pequeno aglomerado populacional e parece querer abençoar o casario agachado por ali abaixo a morrer junto a S. Pedro de Miragaia.

Tanto num caso como no outro, não ressuma de nenhuma dessas cruzes, nem arte nem poesia. São coisas pequenas, muito simples, envoltas na mudez excelsa da resignação que escapam aos olhares menos atentos. No fundo são, simplesmente, um sinal de atenção dos tempos velhos e quase ninguém repara nelas.

Mas uma leitora destas crónicas viu-as e quer saber se esses humildes cruzeiros têm algum significado especial por estarem nos locais onde se encontram. Julgo que não. Ambos têm de comum o facto de estarem em sítios por onde passou a judiaria.

Consta de um velho documento que a cruz que está em Miragaia, se situa "… junto à pedra escorregadia onde ficava o almocáver , ou cemitério dos judeus…"

Uma e outra devem ter sido ali colocados nos locais onde estão , já depois da saída dos judeus daqueles bairros, com o significado, naturalmente, de que, agora, por detrás daquele muro ou para além daquela porta vive outra gente que tem a cruz como símbolo da sua fé.

Venerado pelos peixeiros

Outra questão colocada pela referida leitora foi esta "… qual a procedência do cruzeiro que encontrei no interior da capela de S. José das Taipas e qual a sua invocação... "

Trata-se do Senhor dos Peixeiros. Estava no cimo de uma rampa que dava a cesso à actual Rua da Lage, a dois passos do templo para onde foi removido, em Maio de 1869, e onde ainda se encontra, junto, portanto, ao antigo Mercado do Peixe, demolido para no seu lugar se construir o Palácio da Justiça.

Era da invocação do Senhor da Saúde e muito venerado pelos peixeiros que todos os anos, a 20 de Agosto, lhe faziam uma grande festa. Por essa altura a cruz era envolta em ricos damascos e sedas e adornada com flores e luzes votivas. A festa que assumia as características de uma típica romaria de aldeia, contava com uma banda de música e foguetes.

O Mercado do Peixe começou a ser construído em 1869, no antiquíssimo Campo do Olival, no local onde anteriormente haviam funcionado "os Armazéns chamados Celeiros da Cordoaria ou Celeiros do Pão da Cidade" criados em 1699 no mesmo sítio onde haviam estado os Quartéis Militares do Terço, destinados à guarnição da cidade.

Imposição do bispo

Até 1331 o vasto Campo do Olival era propriedade do bispo. Mas naquele ano, reinando D. Afonso IV e sendo bispo do Porto D. Vasco Martins, houve uma concertação amigável entre o rei e o prelado segundo a qual o Campo do Olival passou para a administração da Câmara passando a partir daí a ser um logradouro público.

Nesta transacção houve uma curiosa imposição feita por parte do bispo. A de que naquele local não seria nunca permitida a instalação de uma cordoaria, nem de feira, nem de matadouro, nem de igreja. Só matadouro é que não houve por ali. Do resto houve de tudo cordoaria, igreja e feira.

O Campo do Olival passou mesmo à história com o nome de Cordoaria depois que, em 1661, ali se instalaram os cordoeiros que antes trabalhavam, com as sua rodas, nas actuais ruas de Tomás Gonzaga e de Francisco da Rocha Soares que, por causa disso, se chamavam, ainda há pouco tempo, a Cordoaria Velha.

Já agora uma pequena nota acerca da Capela das Almas de S. José das Taipas. Tem esta designação porque o templo primitivo ficava na Rua das Taipas, em frente à entrada para a mosteiro beneditino, num prédio que depois serviu de armazém e que foi demolido em 1860.

O templo actual começou a ser construído em 1795 à custa de esmolas da cidade mas só ficou concluído em 1878. À Irmandade de S. José das Taipas, que zelava pelo bom funcionamento do culto nesta capela, juntou-se, em 1780, a Confraria de S. Nicolau Tolentino e Almas, que desde 1634 funcionava na igreja de S. João Novo e era administrada pelos negociantes de bacalhau.

Desta fusão resultou uma nova irmandade a das Almas de S. José das Taipas que após o desastre da Ponte das Barcas em 29 de Março de 1809, no decurso da segunda invasão francesa, passou a realizar o sufrágio anual em intenção das vitimas daquela catástrofe.»

Germano Silva
in Jornal de Notícias

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