Antigo campo da feira do gado
Quem pretender estudar a toponímia da freguesia do Bonfim tropeça, forçosamente, em quatro antiquíssimas quintas a do Reimão, a de Sacais, a da Fraga e a do Prado. Com excepção desta, que deu lugar ao actual Cemitério do Prado do Repouso, as outras quatro enormes propriedades foram todas urbanizadas.
A Quinta da Fraga, que em 1805 ainda pertencia à família do sargento-mor Alexandre José da Costa, deve ter começado a ser retalhada, em quarteirões, nos finais daquele ano. Ao longo dessa propriedade, que era enorme, rasgou-se, por exemplo, a Rua de S. Vítor, cujo nome foi buscar à capela desta invocação que, por alturas do Cerco do Porto, andava a ser construída na Quinta do Prado, então ainda propriedade do bispo do Porto que ali tinha a sua casa de campo ou de recreio.
Nos finais do século XIX havia uma viela que ligava a antiga estrada do Bonfim, agora rua, com o Largo da Quinta do Prado, actual Largo de Soares dos Reis.
Esse velho e tortuoso caminho rural viria a ser, posteriormente, substituído pela Rua de Ferreira Cardoso.
E era aqui que eu pretendia chegar para responder a um leitor que deseja saber que personalidade foi esta e que feitos cometeu ela para que o seu nome merecesse figurar numa rua do Porto.
Uma boa e oportuna questão a que vou tentar responder, naturalmente.
Joaquim Domingos Ferreira Cardoso, grande proprietário e abastado capitalista, em sociedade com o negociante Eduardo Ferreira Pinheiro, compraram, em 1882, por 95 contos de reis, como então se dizia, a casa e a Quinta do Reimão à família Cirne, então representada por Maria Ana Isabel de Sousa Cirne Teixeira Blanco e seu irmão António de Azevedo Cabral Teixeira Cirne.
A casa era o edifício onde hoje funciona a sede da Junta de Freguesia do Bonfim.
O brasão de armas dos Cirnes, influente e importante família portuense, um dos quais chegou a ser nosso Feitor na Flandres, figuravam no cimo da fachada principal da casa. Foi picado em 1890 e substituído por um simples adorno gravado no granito.
Nos terrenos da enorme propriedade que era a Quinta do Reimão, abriram-se as ruas dos duques de Palmela, Saldanha e da Terceira; do Conde de Ferreira e do Barão de S. Cosme; a Rua de Joaquim António de Aguiar e a de Ferreira Cardoso que foi, como atrás se refere, um dos compradores da propriedade.
Claro que muito boa gente se interrogou à posteriori, como agora o fez, também, e com toda a legitimidade, o ilustre leitor destes trabalhos, como é que foi possível incluir entre tão ilustres personalidades ligadas ao Liberalismo o nome de um individuo que se distinguiu, somente, por ser um abastado proprietário local... !
Eis aí um dos insondáveis mistérios em que a toponímia portuense é fértil.
Sacais é um dos topónimos que desapareceram, incompreensivelmente, da toponímia portuense.
Andava ligado à Quinta de Sacais, também conhecida por Quinta do Cativo, de que existe ainda uma ampla residência com seu jardim com frente voltada para a Rua de António Granjo.
Andrêa da Cunha e Freitas, na sua sempre muito apreciada "Toponímia Portuense" diz que nuns registos paroquiais de 1781, que compulsou, encontrou referências a uma Viela de Sacais da Rua do Reimão; e a uma Rua da Boavista de Sacais, junto ao Padrão do Reimão.
Corresponderão aquelas designações a uma só serventia ou identificam mais do que uma ?
Não o sabe dizer aquele probo historiador mas avança para hipótese, mais do que plausível, de que a aquela Viela de Sacais, existente já no século XVII, corresponde à actual Travessa do Bom Retiro muito desfigurada com a construção da estação do metro do Heroísmo.
Sem que, contudo, tenha perdido a ambiência e a garridice de tempos idos palpável, ainda agora, no registo de azulejos que esmaltam as fachadas de alguma das suas casas e onde a devoção popular estampou as imagens dos santos da devoção de cada um.
A Travessa do Bom Retiro mau grado ter hoje casas apenas do lado poente, ainda começa na Rua do Heroísmo e termina na actual Rua de António Carneiro, antiga Rua de Barros Lima.
Muito perto do sitio onde ainda agora confluem a referida travessa com a Rua do Heroísmo ficava um antigo cruzeiro, igual a muitos mais que a fé dos passantes fazia erigir ao longo de ruas, estradas ou simples caminhos.
Fazendo fé no que sobre o assunto escreveu Andrêa da Cunha e Freitas (e não há, pelo menos da minha parte, qualquer motivo para duvidar disso), esse cruzeiro, a que já se referem documentos de 1724, era conhecido como sendo o Padrão da Aldeia da Formiga, nome que lhe veio, naturalmente de alguma propriedade que por ali existiu com aquela designação. A cruz erguia-se do lado norte da rua e estava resguardado de intempérie por um modesto alpendre.
Com base ainda em informações colhidas pelo já citado historiador, o cruzeiro, por meados do século XIX foi levado do sitio onde o povo o venerava para o interior de uma capela da invocação da senhora da Saúde que existiu nas imediações do actual Campo de 24 de Agosto, em frente, mais ou menos, à Rua do Duque de Terceira.
Com este arrazoado, julgo ter respondido às questões mais prementes do amável leitor.
O leitor a que aludo na peça ao lado faz menção na sua missiva ao estado "degradante a que chegou o jardim do Campo de 24 de Agosto" e pergunta desde quando é que deixou de fazer-se naquele sítio a célebre Feira de Gado. Antes de mais, uma observação infelizmente não é só o jardim do Campo de 24 Agosto que está votado ao mais confrangedor abandono. A Cordoaria, o Marquês de Pombal, a Praça da República, para não ir mais longe, estão nas mesmas condições ou piores. Em tempos idos, o Campo de 24 de Agosto foi uma espécie de Manchester portuguesa, tantas e tão produtivas eram as fábricas que por ali proliferavam. No século XVIII, no Porto, ergueram-se igrejas com suas torres que faziam o encanto místico da cidade. No século seguinte, em vez de torres de templos ergueram chaminés de fábricas. Uma espécie de espigas da imensa seara urbanística surgida a par com a industrialização. Agora, a resposta à pergunta pertinente: havia duas feiras - a do gado bovino, que se realizava às terças e sextas-feiras, já funcionava em 1833 e passou, em 1868, para o Largo da Póvoa de Cima, actual Praça da Rainha D. Amélia; a de cavalos, que era mensal, só em 1892 foi mudada para a Praça da Corujeira.
Germano Silva
1 comentário:
Que interessante!
O actual edifício da Junta de Freguesia do Bonfim foi onde fiz a escola primária, da 1ª à quarta classe, ente 1970 e 1974, com a professora Alda do Céu Ferreira.
Ao ler o seu blog, regressei um pouco à infância, à minha escolinha.
Parabéns pelo Blog.
Vou passar a ser visita assídua.
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