«Há anos, quando se deu inicio às obras de construção da nova fase do Hospital de Santo António, por exigência do andamento da própria obra, foi demolida uma pequena capela da invocação do Senhor dos Aflitos que, desde há muitos anos, estava na cerca daquele antigo edifício hospitalar.
Algum tempo depois da demolição da capela perguntei, nesta mesma coluna, pelas suas pedras. Fundamentalmente, eu queria saber se haviam sido guardadas, com vista a uma futura reconstrução ou se, simplesmente, tinham levado sumiço - como é por norma acontecer no Porto em casos semelhantes.
Tive então, por parte da Administração do Hospital de Santo António, a garantia de que a capela seria reconstruída no renovado adro daquela instituição hospitalar.
Na passada quinta-feira testemunhei o cumprimento daquela promessa.
A capela do Senhor dos Aflitos acaba de ser reconstruída no interior da cerca do Hospital de Santo António onde, naquele mesmo dia, foi sagrada pelo bispo do Porto, D. Manuel Clemente.
E que linda que ficou no enquadramento ajardinado especialmente concebido para, digamos assim, a receber.
Numa cidade, cuja auto-estima tão mal tratada tem sido nos últimos tempos; em que a regra parece ser destruir e não construir, e muito menos reconstruir, é reconfortante verificar que ainda há quem se preocupe com a preservação do nosso património histórico.
Parabéns, portanto, ao dr. Fernando Sollari Allegro, presidente do Conselho de Administração do Hospital da Santo António, pelo empenho e pela dedicação com que desde sempre apadrinhou e acompanhou o projecto da reconstituição da Capela do Senhor dos Aflitos.
Vale a pena recordar aqui um pouco da história da Capela do Senhor dos Aflitos.
A evocação, se outro mérito não tiver, pode servir, no mínimo, para que o benévolo leitor possa aquilatar, por si só, da importância que esta ermida teve e tem para a história da cidade.
Desde praticamente a sua fundação que a Santa Casa da Misericórdia do Porto sempre acompanhou até ao local onde eram enterrados, os cadáveres dos infelizes que morriam na forca.
Um desses sítios ainda hoje é muito recordado trata-se do local onde, entre 1748 e 1763, se construíram a igreja e a Torre dos Clérigos. O sítio era conhecido pelo Campo das Malvas e também pelo cerro dos enforcados.
A partir de meados do século XVIII os enterramentos dos que acabavam os seus dias nas forcas passaram a fazer-se num dos extremos de um vasto terreno denominado Casal do Robalo, entre a Cordoaria e a Rua dos Quartéis (actual Rua de D. Manuel II), que a Santa Casa da Misericórdia havia comprado para nele construir "o hospital novo" que viria a ser o actual Hospital de Santo António.
Deve ter sido já neste cemitério que se enterraram os cadáveres dos indivíduos que estiveram implicados na chamada "Revolta dos Taberneiros" que ocorreu, como é geralmente sabido, no tempo do Marquês de Pombal e teve origem num protesto público contra a recém criada Companhia dos Vinhos do Alto Douro.
O terreno da Santa Casa confinava com uma serventia pública que viria a ter, depois, a designação de Rua dos Carrancas, mais tarde Rua da Liberdade e que é a actual Rua de Alberto Aires de Gouveia.
Tanto no Campo das Malvas como, posteriormente, nos terrenos do Casal do Robalo, a existência do cerro dos enforcados era assinalada pela presença de um cruzeiro com a imagem do Senhor dos Aflitos junto do qual ardia sempre, de dia e de noite, uma votiva lamparina de azeite.
Para protecção desta cruz os devotos daquela imagem mandaram construir uma espécie de alpendre que viria a dar origem a uma capela dentro da qual se guardou o cruzeiro com a imagem do padroeiro.
Inicialmente a capela ficava mesmo à margem do tal caminho que veio a dar origem à actual Rua de Alberto Aires de Gouveia.
Em Junho de 1857, "por conveniência urbanística", o pequeno templo, bem como o cemitério, no dia em que se celebrava a festa do patrono do hospital, foram transferidos da beira da artéria pública, onde estavam, para o interior da cerca do Hospital de Santo António.
Os enforcados passaram a ter sepultura num terreno situado atrás da capela.
Neste local esteve o pequeno templo até à sua recente demolição. Voltou agora à cerca do hospital e com ele o cruzeiro do Senhor dos Aflitos com lugar de honra no altar-mor.
A partir de 1857, ano da restauração da capela e do cruzeiro e da mudança de ambos para o interior da cerca do hospital, a data, o dia a seguir aos festejos a Santo António, padroeiro do hospital, passou a ser dedicado ao Senhor dos Aflitos em honra do qual se celebrou, durante muitos anos a fio, uma bonita festa com missa cantada, música e sermão. Agora que a capela foi reconstituída, por que se não retoma o antigo costume ?»
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