7.11.07

Para onde foi o cruzeiro do Senhor da Boa Nova?


Palácio dos Monfalins antes da abertura da "Júlio Dinis"

Chegou mais um recheado lote de cartas (fora as mensagens de correio electrónico) e com elas veio mais uma mão- cheia de perguntas, todas muito curiosas e pertinentes. Mas, por limitação de espaço, só a uma posso responder. E a escolha caiu na de um leitor que, conta ele, visitou há tempos a capela do Senhor da Boa Nova (defronte do Palácio de Cristal) à procura de um cruzeiro que, segundo julgava saber, por ali esteve erguido em tempos idos mas que não encontrou. Gostaria que o informassem acerca do sumiço que levou aquele "rústico padrão de fé" e desde quando é que o bispo do Porto deixou de residir no palacete dos condes de Terena.

Vamos por partes. Primeiro, o cruzeiro não levou sumiço. Está guardado, e bem, no Museu de Arte Sacra e Arqueologia, instalado no edifício do Seminário Maior, à Sé, onde pode ser visitado dentro do horário normal de funcionamento do museu.

À entrada da capela, ao nível do degrau superior da pequena escada exterior que dá acesso à porta principal, do lado da Rua da Boa Nova, ainda existe uma pedra com restos de uma inscrição já quase imperceptível que se julga ter pertencido ao referido padrão.

O cruzeiro, da invocação do Senhor Bom Jesus de Bouças (Senhor de Matosinhos) foi mandado colocar no antigo Campo da Torre da Marca, em 1628, pelo piloto mor da Índia, Pantaleão Gomes, morador em Miragaia, como acto de agradecimento "por a imagem da cruz ter sido esperança e guia [daquele marinheiro] nas longas e perigosas viagens que fizera pelos temerosos mares do Oriente…"

O amplo Campo da Torre da Marca compreendia uma área de mais de 17 mil metros quadrados compreendida entre as quintas do Sacramento e do Passadiço, a Poente; e a dos Sete Campos, a Nascente. Chamou-se sucessivamente Campo e Largo da Torre da Marca devido à existência, ao fundo da actual Avenida das Tílias do Palácio de Cristal, de uma marca ou baliza que servia de orientação aos navios que demandavam o rio Douro. Inicialmente, o que lá esteve a servir de guia aos marinheiros foi um enorme pinheiro, que um dia ardeu. No seu lugar e por iniciativa de um tal Jerónimo Brandão, almoxarife do rei, foi construída uma torre em pedra, "por ser muito necessária para bem da cidade e navios que pela barra dela entrassem…"

Em 1835, a Vereação Municipal deliberou que ao Campo da Torre da Marca se desse o nome de Largo do Duque de Bragança, em homenagem a D. Pedro IV, que acabava de sair triunfante do terrível Cerco do Porto. A ideia, porém, não vingou porque o sítio continuou a ser para o geral da população o Campo da Torre da Marca. Em 1861, construiu-se nesse espaço o desaparecido Palácio de Cristal.

Voltando aos cruzeiros, mais duas curiosidades com outros dois cruzeiros retirados da via pública mas, estes sim, para o interior de templos.

Um era conhecido pelo "Senhor dos Peixeiros" e estava na Cordoaria, junto ao antigo Mercado do Peixe. Era muito venerado pelos vendedores de peixe, que todos os anos lhe faziam uma grande festa. A rústica imagem talhada no granito da região, nessas ocasiões festivas, era envolta em damascos e sedas, adornada com muitas flores e verduras e, durante a noite, ficava iluminada com velas e lamparinas. Ao seu redor havia arraial com música e outros divertimentos. Este cruzeiro foi um dia retirado do sítio onde estava e guardaram-no na capela das Almas de S. José das Taipas, que fica ali perto.

Dizem que este cruzeiro, patrono dos peixeiros quando eles tinham banca na Cordoaria, um dos mais belos de quantos havia aí pela cidade, e eram muitos, quando acontece abrirem-se de par em par as portas da igreja das Taipas, ele espreita o largo defronte com saudade do tempo em que tinha ali uma ruidosa festa…

O outro cruzeiro é o do Senhor do Padrão, da capela da invocação do mesmo nome, na Rua do Heroísmo. Em tempos muito distantes, no sítio onde agora está a capela, existiu um marco que servia para assinalar onde terminava a freguesia de Santo Ildefonso e começava a de Campanhã. Isto, claro, antes da existência da freguesia do Bonfim. No sítio da antiga marca foi depois erigido um cruzeiro da invocação do Senhor do Padrão que deu origem à capela da mesma invocação. Estes templos eram construídos, em regra, com esmolas dos fiéis para nelas se celebrarem missas e outros ofícios a que assistiam as populações que viviam longe das igrejas paroquiais. O cruzeiro está agora dentro da capela.

Para onde foi o cruzeiro do Senhor da Boa Nova?

O chamado Palácio da Torre da Marca pertenceu, em tempos idos, a três poderosas e influentes famílias portuenses os Brandões, a que andaram ligados Diogo e Fernão Brandão, poetas do Cancioneiro; os condes e marqueses de Terena; e os primeiros e únicos marqueses de Monfalim, que morreram sem descendência. No brasão ainda existente na fachada do nobre edifício estão representadas, exactamente, as armas dessas três famílias. Foram os herdeiros dos Monfalins que venderam o imóvel à Diocese do Porto. No edifício funcionou um colégio, esteve instalado o Asilo Profissional do Terço, antes de se transferir para as suas actuais instalações na Praça do Marquês de Pombal e, a partir de 1910, com o surgimento da Lei da Separação e a ocupação, pelo Estado, do antigo Paço Episcopal, junto à Sé, o antigo Palácio da Torre da Marca serviu de residência aos bispos do Porto. Foi nos terrenos da quinta anexa a este palácio, já na posse da Mitra, que em 1934 se começou a rasgar a Rua de Júlio Dinis para estabelecimento, rápido e cómodo, da Rotunda da Boavista com o desaparecido Palácio de Cristal onde por essa altura se instalou a Exposição Colonial Portuguesa.

Texto de Germano Silva publicado no Jornal de Notícias


3 comentários:

Anónimo disse...

Olá, antes de mais parabéns pelo seu blogue. Sou investigador de temas sobre a cidade do Porto, nomeadamente sobre a toponímia.
Em relação a uma rua que já foi falada aqui, posso adiantar que Luis Cruz era dono de uma fundição e criou uma escola nocturna de alfabetização ( 1880-90) para os seus operários. Já agora fique com o meu email se necessitar de algo em relação à cidade não hesite

César Silva
Cumprimentos

Fernando Ribeiro disse...

Há ainda mais um cruzeiro no Porto que está no interior de um templo. Não sei se foi o templo que foi construído à volta do cruzeiro, ou se foi o cruzeiro que foi transplantado para dentro do templo.

Trata-se do cruzeiro do Senhor do Olho Vivo, que está no interior da capela do Senhor do Socorro, a qual, por sua vez, fica na esquina da Rua de Antero de Quental com a Rua do Monte da Lapa, um pouco acima da igreja da Lapa.

Tive a oportunidade de ver o cruzeiro, num fim de tarde em que se rezava o terço na referida capela, e fiquei muito agradavelmente surpreendido. É um belo cruzeiro do séc. XVII. Vale a pena ir lá vê-lo. O nome "Olho Vivo" refere-se ao local em que se encontra, na antiga estrada que ia do Porto a Braga. Aquele local, agora quase no centro da cidade, era tão isolado e tão ermo, que era preciso ter olho vivo para se passar por lá, por causa dos ladrões. Agora também é preciso ter olho vivo para se passar por lá, mas por causa dos automóveis...

T D disse...

Caro César Silva, muito obrigado pelas informações que deixou aqui. Tomei nota sobre a adenda deixada sobre a rua e travessa Luís Cruz e irei publicá-la no devido lugar. O blogue está aberto aos seus textos se os desejar publicar, mesmo sobre fotos já aparecidas.

Caro Denudado, muito obrigado pela referência ao Olho Vivo. e pelo comentário.

Aos dois:
obrigado pelas visitas e pela participação activa.