Os privilégios da colegiada
O meu amigo e homem de Cultura Nuno Canavez, proprietário da Livraria Académica, uma vez por outra (pena que seja tão de longe a longe) tira-se de cuidados, deixa o balcão do estabelecimento entregue às suas duas zelosas colaboradoras e sobe até aos armazéns para uma operação que ele próprio designa de "escavações".
Consiste esse aturado trabalho em minuciosas buscas que são feitas entre o muito e variado material que jaz adormecido nas estantes daqueles depósitos. O resultado, em regra, traduz-se na descoberta de preciosos folhetos, não menos valiosas fotografias que o tempo amareleceu e, frequentemente, também, de raros e cobiçados pergaminhos sempre tão úteis a quem se debruça sobre a história do Porto.
Um desses documentos, por mim recentemente adquirido ao Nuno, ocupa-se de uma longa contenda que nos começos do século XIX se travou entre os cónegos da Colegiada de Cedofeita e o rico negociante Jerónimo Pereira Leite por causa da urbanização do Casal do Pombal, de que este era proprietário e a Colegiada o senhorio directo.
Vamos pôr de parte os dares e tomares do pleito judicial, que pouco significado têm, passados que foram todos estes anos, para tentar saber o que era aquele Casal do Pombal e, de caminho, desbravar um pouco a história de um Prazo do Coxo que também existia para aqueles lados.
O Casal do Pombal, "situado junto à Torre de Pedro Sem e ao cemitério dos ingleses", ocupava uma enorme área que hoje podemos imaginar como abrangendo as ruas de Adolfo Casais Monteiro, que durante muitos anos se chamou, exactamente, Rua do Pombal; Miguel Bombarda; Breiner; e o próprio Largo da Maternidade de Júlio Dinis, anteriormente chamado Largo dos Ingleses e, também, Campo Pequeno.
Segundo o documento na minha posse, integravam o Casal do Pombal "vários campos, um dos quais está tapado de parede, que se costumam afructar e que produzem milho e centeio e que rendem, uns anos por outros, oitenta alqueires…"
Faz-se referência, no mesmo documento, à existência de um outro campo, " que fica da parte de fora e em frente do cemitério dos ingleses e que se acha há muitos anos aberto, no uso público e oculto e que mesmo pela sua qualidade é impróprio de cultura…"
Estávamos em 1806. A cidade começava a sair da apertada muralha fernandina em que vivera durante séculos e estendia os seus tentáculos ao longo dos terrenos arrabaldinos. Jerónimo Pereira Leite, proprietário do Casal do Pombal deve ter chegado à conclusão, lógica, aliás, de que o tempo de se viver à custa do rendimento dos campos tinha os dias contados e decidiu-se pela urbanização daquela sua propriedade. Ofereceu à Câmara terrenos seus para neles se construírem novas artérias pedindo em troca autorização para construir moradias ao longo dos dois lados das novas artérias. A este projecto, no entanto, opôs- -se a Colegiada de Cedofeita sob a alegação de que sobre as terras a urbanizar tinha o direito de cobrar foros e dízimos do género, um frango por cada chão (talhão) de vinte e cinco palmos. Esta questão arrastou-se por muitos anos nos tribunais mas acabou por vencer o projecto do proprietário porque com a revolução liberal de 1820 foram extintos os dízimos e o principio do domínio directo. Com efeito foi só a partir de 1851 que verdadeiramente se começaram a retalhar e a dividir em talhões para construção de casas as várias quintas e propriedades que havia fora dos muros da cidade.
E agora o Prazo do Coxo. Era vizinho, digamos assim, do Casal do Pombal. Abrangia uma área onde depois foram abertas partes das ruas de Cedofeita, Torrinha, Boa Hora, anteriormente chamada da Boa Morte, por causa da existência por ali perto de uma capela desta invocação; do Rosário e do Breiner. Esta propriedade também era foreira da Colegiada de Cedofeita. No século XVIII pertencia a uma senhora viúva, D. Floriana Flora de Bettencourt de Azevedo. A actual Rua do Breiner, que homenageia o liberal Pedro de Melo Breiner, que morreu nas prisões de D. Miguel, começou a ser aberta nos começos do século XIX, mas, quando se traçou a primeira planta topográfica da cidade, a chamada Planta Redonda de George Balck, ainda não estava toda construída e eram muito poucas as casas construídas. Por essa altura ainda não lhe havia sido dado um nome. A designação actual é de 1839.
Voltemos ao Casal do Pombal. A artéria que tomou o nome desta propriedade e que agora se chama de Adolfo Casais Monteiro, na parte que vai da antiga Ruas dos Quartéis, actual Rua de D. Manuel II, até à esquina da Rua de Miguel Bombarda, em 1839, mais de trinta anos depois de feito o pedido para a urbanização da propriedade, ainda não passava de "uma estreita e tortuosa azinhaga". Com aspecto de artéria e já com casas construídas, de um lado e do outro, estava apenas o troço compreendido entre a Rua de Miguel Bombarda, que antes se chamou Rua do Príncipe, em homenagem ao príncipe regente D. João, futuro rei D. João VI.
Memórias do Prazo do Coxo e do antigo Casal do Pombal
Ao longo dos séculos vários reis concederam à igreja de Cedofeita e ao seu abade muitos privilégios, como, por exemplo, os concedidos por D. Dinis, que permitiam aos cónegos da Colegiada a faculdade de "tirarem o sal que quisessem das salinas que estão em Massarelos". Anteriormente, D. Afonso Henriques, para além de ter doada aos cónegos "as herdades confinantes ou próximas da igreja", concedia-lhes ainda direitos sobre todas as pescarias que se fizessem no Douro, a parte em que o rio corria junto ao domínio da Colegiada. D. Afonso IV, por seu lado, escreveu aos administradores de Gaia dando-lhes instruções para que "não embaraçassem os pescadores de Cedofeita e do logar de Massarelos o pescarem no mar e no rio Douro" porque o faziam por conta do D. Abade de Cedofeita. Quem infringisse estas directrizes ficava sujeito ao pagamento de multas de quinhentos soldos, uma boa quantia para a época.
O meu amigo e homem de Cultura Nuno Canavez, proprietário da Livraria Académica, uma vez por outra (pena que seja tão de longe a longe) tira-se de cuidados, deixa o balcão do estabelecimento entregue às suas duas zelosas colaboradoras e sobe até aos armazéns para uma operação que ele próprio designa de "escavações".
Consiste esse aturado trabalho em minuciosas buscas que são feitas entre o muito e variado material que jaz adormecido nas estantes daqueles depósitos. O resultado, em regra, traduz-se na descoberta de preciosos folhetos, não menos valiosas fotografias que o tempo amareleceu e, frequentemente, também, de raros e cobiçados pergaminhos sempre tão úteis a quem se debruça sobre a história do Porto.
Um desses documentos, por mim recentemente adquirido ao Nuno, ocupa-se de uma longa contenda que nos começos do século XIX se travou entre os cónegos da Colegiada de Cedofeita e o rico negociante Jerónimo Pereira Leite por causa da urbanização do Casal do Pombal, de que este era proprietário e a Colegiada o senhorio directo.
Vamos pôr de parte os dares e tomares do pleito judicial, que pouco significado têm, passados que foram todos estes anos, para tentar saber o que era aquele Casal do Pombal e, de caminho, desbravar um pouco a história de um Prazo do Coxo que também existia para aqueles lados.
O Casal do Pombal, "situado junto à Torre de Pedro Sem e ao cemitério dos ingleses", ocupava uma enorme área que hoje podemos imaginar como abrangendo as ruas de Adolfo Casais Monteiro, que durante muitos anos se chamou, exactamente, Rua do Pombal; Miguel Bombarda; Breiner; e o próprio Largo da Maternidade de Júlio Dinis, anteriormente chamado Largo dos Ingleses e, também, Campo Pequeno.
Segundo o documento na minha posse, integravam o Casal do Pombal "vários campos, um dos quais está tapado de parede, que se costumam afructar e que produzem milho e centeio e que rendem, uns anos por outros, oitenta alqueires…"
Faz-se referência, no mesmo documento, à existência de um outro campo, " que fica da parte de fora e em frente do cemitério dos ingleses e que se acha há muitos anos aberto, no uso público e oculto e que mesmo pela sua qualidade é impróprio de cultura…"
Estávamos em 1806. A cidade começava a sair da apertada muralha fernandina em que vivera durante séculos e estendia os seus tentáculos ao longo dos terrenos arrabaldinos. Jerónimo Pereira Leite, proprietário do Casal do Pombal deve ter chegado à conclusão, lógica, aliás, de que o tempo de se viver à custa do rendimento dos campos tinha os dias contados e decidiu-se pela urbanização daquela sua propriedade. Ofereceu à Câmara terrenos seus para neles se construírem novas artérias pedindo em troca autorização para construir moradias ao longo dos dois lados das novas artérias. A este projecto, no entanto, opôs- -se a Colegiada de Cedofeita sob a alegação de que sobre as terras a urbanizar tinha o direito de cobrar foros e dízimos do género, um frango por cada chão (talhão) de vinte e cinco palmos. Esta questão arrastou-se por muitos anos nos tribunais mas acabou por vencer o projecto do proprietário porque com a revolução liberal de 1820 foram extintos os dízimos e o principio do domínio directo. Com efeito foi só a partir de 1851 que verdadeiramente se começaram a retalhar e a dividir em talhões para construção de casas as várias quintas e propriedades que havia fora dos muros da cidade.
E agora o Prazo do Coxo. Era vizinho, digamos assim, do Casal do Pombal. Abrangia uma área onde depois foram abertas partes das ruas de Cedofeita, Torrinha, Boa Hora, anteriormente chamada da Boa Morte, por causa da existência por ali perto de uma capela desta invocação; do Rosário e do Breiner. Esta propriedade também era foreira da Colegiada de Cedofeita. No século XVIII pertencia a uma senhora viúva, D. Floriana Flora de Bettencourt de Azevedo. A actual Rua do Breiner, que homenageia o liberal Pedro de Melo Breiner, que morreu nas prisões de D. Miguel, começou a ser aberta nos começos do século XIX, mas, quando se traçou a primeira planta topográfica da cidade, a chamada Planta Redonda de George Balck, ainda não estava toda construída e eram muito poucas as casas construídas. Por essa altura ainda não lhe havia sido dado um nome. A designação actual é de 1839.
Voltemos ao Casal do Pombal. A artéria que tomou o nome desta propriedade e que agora se chama de Adolfo Casais Monteiro, na parte que vai da antiga Ruas dos Quartéis, actual Rua de D. Manuel II, até à esquina da Rua de Miguel Bombarda, em 1839, mais de trinta anos depois de feito o pedido para a urbanização da propriedade, ainda não passava de "uma estreita e tortuosa azinhaga". Com aspecto de artéria e já com casas construídas, de um lado e do outro, estava apenas o troço compreendido entre a Rua de Miguel Bombarda, que antes se chamou Rua do Príncipe, em homenagem ao príncipe regente D. João, futuro rei D. João VI.
Memórias do Prazo do Coxo e do antigo Casal do Pombal
Ao longo dos séculos vários reis concederam à igreja de Cedofeita e ao seu abade muitos privilégios, como, por exemplo, os concedidos por D. Dinis, que permitiam aos cónegos da Colegiada a faculdade de "tirarem o sal que quisessem das salinas que estão em Massarelos". Anteriormente, D. Afonso Henriques, para além de ter doada aos cónegos "as herdades confinantes ou próximas da igreja", concedia-lhes ainda direitos sobre todas as pescarias que se fizessem no Douro, a parte em que o rio corria junto ao domínio da Colegiada. D. Afonso IV, por seu lado, escreveu aos administradores de Gaia dando-lhes instruções para que "não embaraçassem os pescadores de Cedofeita e do logar de Massarelos o pescarem no mar e no rio Douro" porque o faziam por conta do D. Abade de Cedofeita. Quem infringisse estas directrizes ficava sujeito ao pagamento de multas de quinhentos soldos, uma boa quantia para a época.
Artigo de Germano Silva publicado no Jornal de Notícias
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