16.5.08

Um Sítio Que Nasceu De Uma Curiosa Lenda

A História Lendária De Um Local


Faz pena ver o estado de abandono a que chegou o espaço onde, ainda nos idos de cinquenta, nos nossos dias, portanto, funcionou o antigo Mercado do Anjo. Embora situado em pleno centro da cidade, mesmo à sombra desse ex--líbris portuense que é a Torre dos Clérigos, aquele sítio atingiu um tal estado de degradação que, nos tempos que atravessamos, as pessoas evitam passar por lá… mesmo de dia.

E, no entanto, foi um dos mais buliçosos sítios da cidade, verdadeiro caudal de bizarrias, formigueiro de vidas a par com a estridente algazarra cantante dos pregões.

Em Janeiro de 1838, a Câmara do Porto, presidida por Luciano Simões de Carvalho, no relatório que elaborou para a edilidade que, a seguir, iria administrar a cidade, escreveu o seguinte "… o Mercado do Anjo, no estado em que vo- -lo deixamos, não deve ter dificuldade de concluir-se até ao fim do corrente mês…"

E acrescentou mais isto "… a sua abertura, que não pudemos conseguir em nossa administração, fica reservada para glória vossa …" Simpático, sem dúvida.

Mas havia também algumas recomendações "… seja um dos vossos primeiros cuidados, a compra e demolição das duas moradas de casas isoladas defronte da Torre dos Clérigos e a colocação de toda a gradaria pelos lados da Rua das Carmelitas e da Fonte…"

A fonte a que se alude atrás, estava na parte do mercado voltada para a igreja dos Clérigos.

A rua ainda não tinha a designação actual Rua de S. Filipe de Nery, em alusão ao patrono da congregação que se instalou naquele templo: Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia, S. Pedro ad vincula e S. Filipe de Nery, do Socorro dos Clérigos Pobres da Cidade do Porto.

Em tempos muito recuados, a actual Rua de S. Filipe de Nery, que em 1864 se denominava, somente, Rua de S. Filipe, era um simples caminho que corria ao longo de um terreno conhecido pelo Adro Antigo dos Pobres ou Adro dos Enforcados por ser ali que se enterravam os facínoras que morriam na forca e os presos que faleciam nas celas da cadeia da Relação. Foi neste terreno que se construíram, nos meados do século XVIII, a igreja e a Torre dos Clérigos.

Quanto à Rua das Carmelitas, sabe-se, pela leitura do relatório camarário atrás citado, que a Câmara do Porto solicitara, naquele mesmo ano (1838) autorização à rainha - era a D. Maria I - para proceder ao seu alinhamento. Isto significa, naturalmente, que a artéria sofreu algumas alterações. O que é verdade.

À época em foi solicitado referido alinhamento, a rua, bastante mais estreita do que é actualmente, subia em curva por entre duas altas paredes, uma das quais delimitava a cerca do Convento de S. José e Santa Teresa de Carmelitas Descalças.

Na petição que a edilidade enviou à rainha refere-se, concretamente, que o alinhamento era para se feito nomeadamente "…defronte do correio". Há para isto uma explicação depois da extinção, em 1834, das Ordens Religiosas, os edifícios dos antigos mosteiros, ou foram vendidos a particulares, em hasta pública, ou foram ocupados por serviços do Estado.

No Convento das Carmelitas que ficava ao cima da rua com esta designação e ocupava, praticamente, todo o quarteirão compreendido entra as actuais ruas das Carmelitas, Galeria de Paris, Santa Teresa e a Praça de Guilherme Gomes Fernandes, instalaram-se, após a saída das religiosas, várias repartições públicas, nomeadamente a estação central da Mala Posta que fazia a ligação entre Lisboa e o Porto; e a estação dos Correios e porque estes serviços eram os mais concorridos, foi pela sua designação que o edifício se tornou, também, mais conhecido.

O Mercado do Anjo, enquanto funcionou ao serviço da cidade, durante mais de um século, foi um dos sítios de maior movimento do Porto. Tudo o que é generoso de expressão popular assentou ali arraial. Ao redor do ressonante chafariz que ornamentava o centro do mercado, fazia-se a cerimónia da eleição da Rainha das Vendedeiras e respectiva damas de honor.

Tudo desapareceu. Um conjunto de circunstâncias de acaso urbanístico fez do recinto do antigo mercado um couto da marginalidade, uma lixeira, uma vergonha.

E até quando os edis portuenses irão permitir que esta chaga purulenta continue exposta à comiseração pública de quem por ali passa ?


Uma piedosa e ingénua lenda anda ligada à origem do nome que celebrizou este sítio. Consta que, em certa ocasião, passando D. Mafalda e D. Afonso Henriques, por aqui, a caminho de Guimarães, a esposa do monarca sofreu grave acidente. Em hora de aflição, o nosso primeiro rei terá prometido mandar construir uma capela em honra de S. Miguel-o-Anjo se a rainha saísse ilesa do trágico acontecimento. A prece foi escutada e a promessa cumprida. Na ermida havia uma imagem de Sebastião e na seta que trespassava o coração do santo protector contra a peste estava pendurada uma chave - a da porta da cidade que se abria ali perto na muralha fernandina. Fora ali colocada para que o padroeiro protegesse a cidade dos surtos da peste tão frequentes e mortíferos durante toda a Idade Média. Ao redor da capela de S. Miguel-o-Anjo instituiu-se, em 1672, o Recolhimento do Anjo destinado a acolher viúvas e meninas órfãs filas de pais nobres. A sua actividade durou até à extinção das ordens religiosas. O edifício foi demolido em 1837 para dar lugar ao Mercado, que acabou também por tomar o nome do padroeiro da capela original.

Germano Silva

Texto publicado no Jornal de Notícias

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