23.5.08

Vida e morte de uma cidade

Lembrei-me agora da diversidade de profissões urbanas que, por volta dos anos 50, existiam por esse Porto fora e que o progresso (?) - ou, se quiserem, a globalização - matou sem dó nem piedade. Dir-se-á que nos nossos dias já não precisamos disso; que, por exemplo, o Mercado do Bolhão poderá fechar as suas portas, como fecharam as do Mercado do Anjo, que ninguém dará pela diferença. Dir-se-á que podem fechar todas as lojas da Baixa Portuense que as catedrais de consumo aí estão para as substituir com vantagem. Mas, e a alma do Porto, não morrerá entretanto ?

Não, vão dizer que velha urbe terá forças para ressurgir por muitas malfeitorias que lhe façam e que não importa que se assista ao "esmagamento total" do comércio tradicional que o Porto encontrará forças para substituir, sob outras formas, aquela que foi uma das poderosas forças de afirmação da cidade no contexto regional e mesmo nacional. Vão dizer, por fim, que não importa que tenham fechado os cinemas do centro - e que a caminho encerrem também os teatros e os cafés que ainda existem dignos desse nome - que os portuenses encontrarão outras formas de convivência social.

Na realidade a História demonstra que, na voragem do tempo, outros modos de viver também foram cruelmente esmagados como aqueles que invadiram a cidade a partir de meados do século XIX quando o Porto, depois de ter galgado as Muralhas Fernandinas mercê dos planos almadinos de Oitocentos, iniciou outra etapa de crescimento que só terminou na Estrada da Circunvalação. José Pacheco Pereira - um portuense ilustre - escreveu na sua monumental biografia não autorizada de Álvaro Cunhal, que há 50/60 anos labutavam nas cidades "uma enorme quantidade de artesãos e semioperários, em mil e um ofícios que já não existem". Já não há, de facto, "carroceiros, padeiros, cortadores de carnes verdes, cinzeladores, funileiros, colchoeiros, latoeiros, marceneiros, criadas e criados de servir".

Já não há, também, padeiras de Avintes e Valongo; peixeiras de Matosinhos e da Afurada; e hortaliceiras da Maia e de Ramalde. Também já não há os carroceiros que vinham, à noite, de S. Cosme e arrabaldes, levantar as "águas chocas" e os estrumes amontoados nas ruas. Como também acabaram os galegos que, fugidos à fome em que viviam no dealbar do século XX, invadiram o Porto e se encarregaram dos trabalhos mais pesados eram aguadeiros, carrejões e fabricantes de polvilho para os colarinhos engomados das camisas. Neste particular da oferta de emprego, o Porto funcionava para o norte do país como que uma espécie de Brasil onde arribavam todos aqueles que queriam fugir às más colheitas, à carestia do pão e à praga da filoxera das vinhas, engrossando o contingente das criadas e aprendizes de ofícios - e daqueles que aspirando subir na vida queriam ser caixeiros das lojas mais afamadas.

Citemos outra vez, com a devida vénia, Gaspar Martins Pereira "Apesar de tudo, das transformações que se verificaram na segunda metade do século XIX, não é possível esconder a vincada ruralidade do Porto até início do século XX: são paisagens, ruídos, cheiros, gestos e vozes que, apesar das inovações, conservarão uma forte ligação do Porto com o mundo rural do norte". Tudo isto, afinal, não acabou há muito tempo... À minha porta, na Rua do Almada, em meados da década de 50 do século passado, ainda passavam carros de bois com pipas de vinho, pedra e carqueja e desfilavam o Infantaria 18 que, em boa formatura, ia à Serra do Pilar fazer exercício de tiro.

E era eu que ia à Praça da Liberdade contratar um carrejão para transportar a S. Bento, o malão que minha avó levava para Caldas de Moledo quando ia às vindimas daquilo que era seu.

Jorge Vilas
Publicado no Jornal de Notícias


1 comentário:

Anónimo disse...

Adorei o que acabei de ler e que saudades desses tempos...pena não ter algumas fotos para ilustrar.Parabens.