20.6.08

Desenvolvimento citadino em meados do séc. XIX

"Soavão as 5 horas da tarde no relógio da igreja dos extintos Frades Grilos ( e grilos na extensão rigorosa da palavra , porque os expulsaram do seu buraco) quando largamos da lingueta da Porta Nobre em direcção à Foz…"

É com estas palavras que abre um precioso manuscrito, que guardo na minha pequena biblioteca e a que o seu autor deu o sugestivo título de "Recordações da Foz - 1850". Trata-se de um diário em dois volumes de formato A4, de 180 páginas cada um, em que minuciosamente se relata o dia-a-dia de uma família burguesa do Porto a banhos na Foz. Para onde se ia, naquele tempo, conforme a descrição acima transcrita, de barco.

O romantismo batia em cheio aí pela cidade. O Porto, na expressão curiosa de Camilo, era "um autêntico viveiro de poetas". E alguns dos protagonistas desse extraordinário movimento que foi o romantismo, como é o caso do próprio Camilo e de Faustino Xavier de Novais, presenças assíduas na Foz daqueles tempos, são frequentemente citados no diário em causa.

Mas engana-se quem julgar que a época era apenas de patuscadas, estroinices e boémias. Nos saraus familiares, recitava-se, é verdade, o "vai alta a lua na mansão da morte…"; nos teatros assistia-se a dramalhões em que o tema central eram amores empecilhados, suicídios e raptos.

Não obstante, a cidade progredia. Com efeito, foi a partir dos meados do século XIX que efectivamente uma onda de progresso invadiu a velha urbe. Por aquele tempo, o Porto começava a estender os seus tentáculos urbanísticos para além das muralhas fernandinas. A vasta zona do Bonfim, que até aos fins do século XVIII não passava ainda de um arrabalde pouco habitado, com imensos campos de cultivo e uma ou outra quinta, estava, por meados do século XIX, já bastante urbanizada com arruamentos novos e imensamente povoada.

Eram tantas as fábricas que todos os anos ali se construíam que passaram a chamar àquele bairro o "Faubourg Saint Antoine" cá do sítio, comparando-o desta forma com a área industrial de Paris, que tinha aquela designação.

No lado oposto da urbe, ao longo da margem direita do rio Douro, nas ruas de Entrequintas, Vilar e Campo Alegre, viviam os ingleses em casas "geralmente pintadas de verde-escuro, de roxo- -terra, de cor de café, de cinzento, de preto… até de preto…" como muito bem as descreveu o nosso portuense Júlio Dinis.

Pelo miolo da cidade, naquela parte compreendida entre o Bonfim e a Rua de Santa Catarina, instalaram-se os "brasileiros", designação que então se dava aos nossos compatriotas que tinham emigrado para o Brasil e regressavam de lá ricos. Alguns dos palacetes que os "brasileiros" mandaram construir para neles viver ainda hoje podem ser admirados especialmente na Rua de D. João IV.

Em 1855, a então chamada Rua de Santo António, actual Rua de 31 de Janeiro, ainda não estava totalmente bordejada de casas. Mas já se pensava numa obra que muitos naquele tempo consideraram uma utopia e que consistia na abertura, a partir do antigo Campo de Santo Ovídio (Praça da República), da "Rua da Boavista com continuação até ao Castelo do Queijo e a ligação com uma estrada à beira-mar desde o Douro a Leça…". O sonho só se realizou já nos nossos dias.

Naquele mesmo ano fora demolido o medieval Arco de Vandoma, junto à catedral. Em contrapartida estavam em adiantado estado de conclusão as empreitadas para o alargamento da Rua da Firmeza, da Praça da Batalha e da antiga Rua da Duquesa de Bragança, actual Rua de D. João IV.

É desta época um requerimento enviado pela Junta de Freguesia da Sé à Câmara a solicitar o restabelecimento da Feira das Hortaliças na escadaria que havia à entrada do mosteiro das monjas beneditinas de S. Bento da Ave-Maria.

O pedido foi indeferido pela Edilidade com o pretexto de que alguns anos antes (1839) havia sido construído na cerca do antigo Recolhimento do Anjo um novo e moderno mercado, onde a venda daqueles produtos tinha perfeito cabimento.

Sensivelmente meio século depois, dois vereadores municipais, José Maria Ferreira e António Júlio Machado, propuseram ao executivo camarário de então um projecto elaborado pelo eng.º H. de Baére, para a construção, no lugar do mosteiro de S. Bento da Ave-Maria, de uma estação central dos caminhos-de-ferro. Foi a irremediável e lamentável sentença de morte do velho convento e da sua belíssima igreja barroca. No Porto houve destas coisas em nome de um progresso, às vezes discutível, destruiu-se verdadeiras obras de arte.

Germano Silva
in Jornal de Notícias


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