3.6.08

A rua onde se secava e debulhava o trigo

Fui buscar o título para esta crónica a uma passagem do "Santuário Mariano", de Frei Agostinho de Santa Maria. Referindo-se às mil e uma invocações que se fazem de Nossa Senhora, e ao aludir à capela onde, no Porto, se venerava a imagem de Nossa Senhora do Ferro, que ainda há muito pouco tempo trouxe a estas colunas, aquele cronista situava-a "nas proximidades da Rua Chã das Eiras" explicando logo a seguir que a rua tinha este nome por ser ali "…que se faziam as eiras em que se debulhava o trigo…"

Antes de prosseguir uma explicação a Rua Chã é das mais antigas artérias da cidade. Sabe-se que já existia, pelo menos, em 1293 e que inicialmente se compunha de dois troços distintos: um que ia da entrada da Rua do Loureiro até à calçada de Vandoma e se chamava simplesmente Rua Chã; outro que da Calçada de Vandoma ia até ao cima da Rua do Corpo da Guarda e que se chamava Rua das Eiras. E como uma parte completava a outra chegou a ter a designação de Rua Chã das Eiras.

E das Eiras porquê ? - pergunta o leitor com toda a legitimidade. Porque quando toda aquela zona ficava do lado de fora do muro velho, ou seja da parte de fora da muralha romana, muito antes da existência da muralha fernandina, parece que se aproveitava a planura do terreno e a sua privilegiada exposição ao sol para ali se secarem os cereais que eram do Cabido.

Relativamente à Rua Chã, o beneditino Pereira de Morais, autor seiscentista de várias obras sobre o Porto, é da opinião que esta designação provém do facto de se tratar de "… uma rua plana, grande e espaçosa…" acrescentando que ".. se diz chã por ser plano o seu pavimento…" A partir daqui, tire o leitor as suas próprias conclusões.

Há 600 anos, exactamente em 1408, aconteceu nesta rua uma grande desgraça todo o casario que era, naturalmente, feito de madeira, foi devorado por um pavoroso incêndio. Ainda naquele mesmo ano, a Câmara, então profundamente interessada na efectiva resolução dos verdadeiros problemas do burgo, ordenou que tudo fosse rapidamente reconstruído mas que as casas deviam ser feitas em pedra.

Surgiu, entretanto, um problema que impedia a reconstrução das moradias com a rapidez exigida pelos edis pouco tempo antes, os "siseiros" (cobradores do imposto da sisa) haviam mandado fechar o Postigo de Carros, aberto na muralha fernandina, em frente à igreja de Santo António dos Congregados, não permitindo que por ali transitassem nem pessoas nem carros. A Câmara protestou juntando o seu clamor aos dos lavradores.

Da parte de fora da cerca, ou seja, onde posteriormente veio a ser aberta a actual Praça da Liberdade, ficavam as melhores hortas e os lavradores que delas cuidavam, viam-se obrigados a dar uma grande volta quando para elas levavam o estrume que vinham buscar à cidade. A Câmara pretendia que se reabrisse o postigo porque era através dele que passavam os carros de bois com a pedra, a madeira e a cal indispensáveis para a reconstrução das moradias que tinham ardido.

Mas a Rua Chã guarda muitos outros pergaminhos e tradições que se não vêm, nem andam muito nas páginas da crónica portuense. Passavam obrigatoriamente por ela as mais imponentes e solenes procissões que se realizavam no Porto. Lá vai a do Corpo de Deus. Tantos anos levou a subir e descer a Rua Chã que os alfaiates, tecelões, tecedeiras e mercadores eram obrigados a toldar, ou seja, colocar toldos para protecção contra as ardência do sol, desde a Rua do Loureiro até (à porta de) Vandoma.

A Rua Chã beneficiava de vários privilégios, um dos quais, talvez o mais importante, era o de que os que nela moravam tinham isenção de aposentadoria, isto é ninguém que passasse na cidade, em viagem, ou negócios, podia exigir que nela lhe concedessem aposentadoria. Foi uma das primeiras artérias do burgo a ser contemplada com uma estalagem "grande e boa…"

Em 1757 fizeram-se sentir nesta artéria, de forma bastante violenta, os ecos da Revolta dos Taberneiros quando os revoltosos "erguendo medonho alarido" se juntaram defronte da casa do Juiz do Povo, José Ferreira da Silva, que vivia à entrada da Rua do Loureiro.

Este tipo de protestos e outras revoltas, muito frequentes nos séculos XIV e XV, nomeadamente as que eram encabeçadas por mercadores e mesteirais, em protesto contra a imposição de novos impostos ou as tentativas de cerceamento das liberdades antigas, levaram muitos estrangeiros, que por aqui se haviam instalado, a procurarem paragens menos agitadas e a instalar-se ao longo da margem direita do rio onde predominava o sossego dos campos.

Uma das mais importantes corporações profissionais que nos começos do século XIX funcionava na Rua Chã (imaginem só!) era a dos chocolateiros - os homens que trabalhavam com chocolate.

António de Freitas, morador na rua, era um dos mais prósperos mas também um dos mais inconformados contra "as pessoas que se haviam intrometido no mester e se dedicavam à manufactura do chocolate sem terem qualquer preparação para o fazer…"

O protesto de António Ferreira, a que aderiram muitos mais profissionais, foi registado no escritório do tabelião Manuel José de Oliveira para depois ser entregue às autoridades e nele se diz, nomeadamente, que procuram defender " a maior perfeição, bondade e asseio das suas manufacturas para evitar que perigue a saúde dos povos…"

A Rua Chã, já nos nossos dias, também era conhecida pela rua dos barbeiros, tão numerosas eram as lojas destes profissionais que por ali havia.



O típico Café Royal

Na Rua Chã, os simpáticos restos de moradias, com semblante de setecentos, são reminiscências que evocam os tempos em que por ali viveram os Belezas de Andrade, ligados à Companhia Geral de Agricultura das Vinhas do Alto Douro; altas-dignidades da Igreja Portucalense; ricos comerciantes e artistas, que trabalharam nas obras da Sé e do mosteiro de S. Bento da Ave-Maria. Nos baixos do melancólico e nobre solar dos Castros, mesmo em frente à antiga Viela da Cadeia, actual Travessa da Rua Chã, funcionou o mais emblemático café do sitio - o célebre Royal, que tantas vezes inspirou as cantigas dos ceguinhos. Não era um café espampanante com luzimento de espelhos, candelabros e outros atavios. Mas era um típico café do Porto, com aquele ambiente esfumado que, na época, caracterizava os estabelecimentos e aquele alegre vozear que não se entendia nem se deixava ouvir, tudo ilustrado pelas conversas dos últimos "graxas" personagens típicos dos cafés portuenses. O Royal finou-se tal como outros cafés o Saban, o Excelsior e o Sport. No seu lugar está agora a loja de um chinês, ou coisa por aí. Foram-se da rua os revoltosos, desapareceram os chocolateiros, levaram sumiço os barbeiros.

Germano Silva
in Jornal de Notícias


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