20.2.08

A ermida e o seu ermitão em terras do Calvário Velho

Breve história de um desastre

"Um colega meu, de nacionalidade italiana, jornalista num grande diário de Milão, mas que também é arquitecto, deslocou-se recentemente ao Porto, por causa de um estudo sobre urbanismo medieval que anda a elaborar para uma revista da especialidade.

Por indicação de um amigo comum procurou-me e pediu-me que o acompanhasse nas pesquisas que cá veio fazer.

Era a primeira vez que nos visitava. Não conhecia a cidade. Melhor o que dela sabia recolhera-o de folhetos turísticos, na internet em um ou outro artigo publicados em revistas que se ocupam especialmente com o urbanismo medieval.

Surpreendeu-me, por isso, quando, naquele pequeno logradouro onde se cruzam, digamos assim, as ruas das Carmelitas, de Cândido dos Reis, de S. Filipe de Néri, do Conde de Vizela e dos Clérigos, ele tivesse feito esta observação reveladora, sem dúvida, de uma grande perspicácia profissional " Ora aqui está uma zona que deve ter sido profundamente alterada em menos de duzentos anos…" É que foi isso mesmo que aconteceu.

Demoliu-se o convento das Carmelitas. Acabou-se com a vergonha dos "Ferros Velhos". Arrasaram-se casebres. E, no lugar de tudo isso, construiu-se o airoso e bem delineado Bairro das Carmelitas.

Já ninguém se lembra e poucos saberão que, ainda nos começos do século XVIII, por aqui, num sitio que hoje podemos considerar como podendo ter sido à entrada da Rua de Cândido dos Reis, na esquina com as Carmelitas, havia uma pequena ermida e, muito perto, a casa do ermitão em cujo quintal fora levantado um cruzeiro que uma lamparina de azeite alumiava toda a noite. Era, aliás, por aquele tempo, a única iluminação pública do local.

A viela do Correio

Estou a falar de uma área que há 200 anos ficava da parte de fora da muralha fernandina que, verdadeiramente, só começou a ser demolida em meados do século XIX. Nos finais do século XVIII a actual Rua do Conde de Vizela era ainda um simples e tortuoso caminho a que davam o nome de Viela do Correio por viver ali perto "o correio assistente da cidade do Porto com os seus serviços postais".

A movimentada e ampla Rua dos Clérigos, por seu lado, começou por ser uma simples serventia que pela parte de fora da muralha levava até à Cruz da Cassoa, junto ao Campo das Malvas e Adro dos Enforcados onde se enterravam os criminosos que na forca expiavam as suas culpas.

A existência do Campo das Malvas ainda é referida num documento da Santa Casa da Misericórdia do ano de 1843, já no século XIX.

Por ali perto corre a Rua de Santa Teresa que obteve esta designação do mosteiro das Carmelitas de S. José e Santa Teresa, edificado no ano de 1704 junto ao campo denominado da Via Sacra ou do Calvário Velho por ser o término de uma "Via Crucis" que começava junto à Sé, passava pela Rua do Loureiro e subia a íngreme ladeira onde depois se rasgaram as ruas da Fábrica e a de Santa Teresa. Esta, anteriormente, chamava-se "Rua do Moinho de Vento junto aos arcos das Carmelitas…"

O Largo do Moinho de Vento ainda lá está. A actual Rua de S. Filipe de Néri era, desde tempos imemoriais, um simples caminho rústico que, depois de 1672, ano em que ali perto foi fundado o Recolhimento do Anjo, passou a denominar-se " viela do Recolhimento do Anjo".

Com a construção, já no século XVIII, da igreja e torre dos Clérigos, foi aberta uma outra artéria paralela aquela a Rua da Assunção assim denominada em louvor da padroeira da igreja dos Clérigos. Esta rua foi aberta em terrenos cedidos para esse efeito pela Irmandade dos Clérigos Pobres.

Mudanças de nome

E a Rua das Carmelitas ? Até ao final do século XIX praticamente não existia. O que havia era um simples caminho ladeado pelos elevados muros das cercas do convento que depois veio a dar o nome à artéria em causa e do Recolhimento do Anjo.

Em 1839 chamava-se Rua do Anjo. Depois foi Rua Nova do Anjo e ainda Rua Nova de Jesus do Anjo. Todas estas designações andavam ligadas ao tal Recolhimento do Anjo que uma tal Helena Pereira da Maia fundara, para recolhimento de meninas órfãs, filhas de pais nobres, no sitio onde depois se construiu o Mercado do Anjo, também já desaparecido.


Foi há cem anos. Vão completar-se em 28 de Novembro. Corria o ano de 1907. A Rua dos Clérigos, em termos comerciais, era uma das mais movimentadas artérias da cidade. Tinham ali as suas lojas os chamados mercadores de tecidos ou fanqueiros.

Ora foi exactamente num destes estabelecimentos, "A Vianeza", que no dia 28 de Novembro de 1907 um eléctrico entrou inesperadamente, matando uma cliente que estava a ser atendida ao balcão.

O carro eléctrico descia a Rua das Carmelitas. Ao entrar na Rua dos Clérigos descarrilou ao dar a curva e foi enfiar-se na loja. A partir daí "A Vianeza" passou a ser mais conhecida por "Casa do Eléctrico" e os seus proprietários, para lembrança do sucedido, mandaram pendurar no tecto um eléctrico em miniatura.

Uma característica desta artéria consistia na exposição ao longo dos passeios dos artigos que se vendiam nas lojas. Os produtos que se expunham eram de tal modo abundantes e tão semelhantes que parecia estarmos a apreciar o mostruário de uma só loja. "

texto de Germano Silva publicado no Jornal de Notícias



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