26.2.08

Figueiroas e João de Barros vizinhos na Rua das Flores

Algumas delas deviam ser, do ponto de vista arquitectónico, verdadeiras obras de arte, como parece ter sido o caso, por exemplo, da moradia em que viveu o dr. João de Barros, o consagrado autor da "Geografia de Entre Douro e Minho e Trás-os-Montes". Dessa casa existe um belo desenho que foi publicado no catálogo da exposição "O Porto e a Europa do Renascimento" e que nos mostra uma bela moradia ao melhor estilo daquela época mas que, infelizmente, já não existe.

É no entanto possível identificar o local onde ficava essa casa na Rua das Flores e fazer, também, a reconstituição, embora muito resumida, da sua história.

No século XVI (1524), a casa pertencia ao padre Martinho do Couto, abade de Santa Maria de Fiães, que, à sua morte, a deixou a uma filha chamada Joana do Couto, que veio a casar com o dr. João de Barros.

Daquele casal a moradia passou, por venda (200$000 réis), em 1571, para Estêvão Ribeiro, que era o prior de Lagos.

Em 1897, para abreviar, já nos finais do século XIX, a casa em referência era propriedade do Banco Comercial do Porto, que a vendeu a José Bento Pereira.

Trata-se do edifício onde funcionou até há pouco tempo a célebre Papelaria Reis e que acaba de ser objecto de uma profunda intervenção realizada pela Porto Vivo, que transformou um imóvel, em vias de degradação, num excelente condomínio fechado destinado a habitação.

Já agora, vale a pena lembrar aqui a história da Papelaria Reis, que foi um dos estabelecimento emblemáticos da Rua das Flores.

Nasceu na Rua do Almada, em 1865, tendo sido seu fundador Manuel Alves dos Reis. À morte deste sucedeu-lhe na administração do negócio seu filho José Alves dos Reis, de quem Carlos Bastos traçou uma pormenorizada biografia no "Livro de Ouro do Comércio e Indústria do Porto", onde fomos colher alguns dados para este trabalho.

A transferência da Papelaria Reis para a Rua das Flores ocorreu há exactamente 100 anos - em 1907. Mas não foi logo para o sítio onde esteve a casa de João de Barros. Instalou-se, primeiro, no prédio com os números de 21 a 25, onde já funcionava um estabelecimento do mesmo ramo - a Papelaria Rebelo, que havia sido fundada em 1877 por João Vieira Rebelo. Foi só muito mais tarde (Dezembro de 1931) que a Papelaria Reis se mudaria para o prédio com a numeração de 150 a 160, onde ficou praticamente até aos nossos dias.

Uma outra casa importante da Rua das Flores foi aquela que fica na esquina da Rua do Ferraz e que passou à história com a designação de Casa da Companhia, por ter servido, durante muitos anos, de sede à Real Companhia da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. Em 1523 construiu ali uma moradia um tal Brás Brandão, camareiro do bispo do Porto D. Pedro da Costa. O prédio actual deve ter sido edificado entre 1697 e 1747 e, antes de servir de sede à Companhia dos Vinhos, foi a residência da influente e rica família dos Figueiroas Pinto. Com efeito, em 1697, João de Figueiroa Pinto, contador das sisas da cidade, pagava pela casa onde vivia na Rua das Flores o foro de 900 réis.

A recolha das rendas estava confiada aos rendeiros do bispo, que as arrematavam. O Cabido, para tratar das suas rendas, tinha o "cónego prebendeiro". O pagamento dos foros podia ser feito em diferentes épocas. Por norma, os pagamentos, com raríssimas excepções, eram efectuados em Setembro pela festa do S. Miguel. O pagamento tanto podia ser em géneros como em dinheiro. Para arrecadar os pagamentos em cereais, o Cabido tinha um celeiro diante da porta principal da catedral. Se assim fosse acordado, o pagamento também podia ser feito em três prestações pelo Natal, pela Páscoa e pelo S. João.

Uma descrição da casa datada de 1747 corresponde exactamente ao prédio que ainda hoje existe "… huma morada de casas nobres que (eles, Figueiroas Pinto) poshuem nesta Rua de Santa Catarina das Flores, para onde tem a principal fronteyra e fazem quina à Viela do Ferraz, para onde tem outra face e nella sua capella em que se diz missa…". A frontaria da capela ainda lá está.

Referindo-se à Rua das Flores, João de Barros, na sua "Geografia de Entre Douro e Minho e Trás -os -Montes", informa que "as casas desta rua têm todas quintais e jardins mui frescos e hortas que quase todas tem agoa com que Regão e a mor parte destas casas são boas e nobres…"


No século XVI entendia-se por Rua de Santa Catarina das Flores à parte da actual Rua das Flores que vai " do chafariz de S. Domingos thé a boca do Souto e Caldeireyros…" Daqui até à actual Praça de Almeida Garrett era a Rua de Carros, por ficar próxima da porta da muralha fernandina com esta designação. Como é geralmente sabido, a Rua das Flores foi mandada abrir por iniciativa do rei D. Manuel I, em 1521, ao longo do rio da Vila, por onde vicejavam hortas que eram propriedade da Igreja por estarem dentro do perímetro compreendido na doação que D. Teresa fez ao bispo D. Hugo. Uma vez delineada a rua, em cada um dos lados da nova artéria marcaram-se talhões para a construção de casas e quintais, revertendo as rendas das casas da Rua de Santa Catarina das Flores para o bispo; e as das casas da Rua de Carros, para o Cabido. Ora, a casa onde viveu o dr. João de Barros situava-se exactamente no ponto de encontro dos terrenos da Mitra e do Cabido.

Publicado no Jornal de Notícias




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